OPINIÃO

Eurico Antonio Gonzalez Cursino dos Santos é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Graduado, mestre e doutor em Sociologia pela UnB com permanência intermediária de dois anos e meio na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Realizou estudos de pós-doutorado em História da Religião na Universidade de Nova Iorque (NYU), EUA. Desenvolve estudos e pesquisas em sociologia da religião, da política e do direito.

Eurico A. G. C. dos Santos

 

O Oriente Médio e a Ásia Menor, de um lado, e a Europa e a América do Norte, de outro, parecem ter adotado a violência terrorista e medidas de repressão nacionais e internacionais ao terrorismo como uma espécie de código em que se dá, há cerca de um século e meio, a comunicação entre os lados acerca de suas já longevas insatisfações recíprocas. Parecem trocar significados através de bombas, tiroteios etc., por um lado, e bombardeios, restrições diplomáticas e comerciais etc., por outro.

 

O crescimento dos aparatos que “emitem” tais mensagens, isto é, dos grupos terroristas e das forças de inteligência e de segurança dos estados nacionais europeus torna, ao menos, bastante provável que o problema já tenha aprendido a reproduzir-se por si mesmo. Os meios já fazem com que isso seja concebível, assim como, no plano dos debates, as reivindicações de parte a parte são amplas e genéricas demais (ainda que justas) para que seja concebível “atendê-las”.

 

Por isso mesmo, ou seja, em razão da impossibilidade última de se tomar a sério a totalidade do que cada uma dessas diversas partes espera da outra, é que as crenças e doutrinas religiosas  cristãs e islâmicas prestam-se bem ao papel de “atoras” nesses conflitos (que já não podem mais cessar, por autorreproduzirem-se). Senão, vejamos. Tanto o Cristianismo quanto o Islamismo são religiões “reveladas”, e isso quer dizer, entre outras coisas, que suas afirmações vieram para corrigir todos os erros das visões anteriores enquanto revelam a “única” verdade. No cotidiano das vidas das pessoas comuns, essas inflexões são normalmente interpretadas como condições da vida interior de cada um, não tomando a forma do ataque ao vizinho em função de sua “ignorância” da verdade. E isso pela razão muito boa de que a esmagadora maioria das pessoas, pelo mundo afora, não vive todo o tempo em torno da religião, e nem permite que esta, sozinha, dite-lhe os rumos da vida (quando isso ocorre, se diz que há “fundamentalismo”).

 

Contudo, a lógica simbólica que emana das religiões “do livro” (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) pode desdobrar-se na direção do fundamentalismo, o que é comum na história das religiões. Por sua vez, tais interpretações doutrinárias prestam-se, ainda que involuntariamente, à sua utilização por grupos de interesses que disputam o poder político internacional. Esses últimos interesses “filtram”, aí sim, intencionalmente, as crenças religiosas fundamentalistas que lhes permitirão fustigar o inimigo político-militar e econômico. Se isso parecia, até há pouco tempo, descrever mais de perto apenas os países islâmicos, a recente vitória eleitoral de Donald Trump mostra que o Cristianismo também pode lançar mão de seus guerreiros da fé.

 

Até aqui, viemos descrevendo o que nos parece ser um movimento de “uso” de crenças e de ideias religiosas como instrumentos em lutas pelo poder político e econômico internacional. Ou seja, em certo sentido, estivemos dizendo que a religião tem funcionado como espécie de boneco de ventríloquo de interesse políticos e econômicos que se confrontam no plano internacional.

 

Se procurarmos, contudo, dar um pouco de perspectiva histórica a nosso argumento, veremos que, ao menos no caso da civilização Ocidental e do Islã, as religiões sempre foram uma das principais, senão a principal, fontes de justificativas extramundanas (e não políticas, por extensão) para atividades de expansão e de conquista de mercados e de Estados, como bem sabemos em razão de nossa origem colonial. Se pensarmos assim, teremos de concluir que os resultados das lutas “subterrâneas” (economia e política) sempre foram decisivamente influenciados e moldados por seus agentes “de superfície”, isto é, os “fundamentalistas” religiosos.

 

Assim, ainda que as religiões em luta não vão lograr que uma submeta os infiéis da outra, irão, em nome desses bizarros anúncios da “verdade revelada” que são as bombas terroristas e os ataques aéreos de retaliação contra alvos imprecisamente determinados e que custam muitas vidas inocentes, alterar de modo importante a vida das pessoas. Em nome de Deus, já mudaram, ao longo dos últimos cem anos, regras internacionais dos mais diversos tipos (imigração, asilo, cooperação, indústria, serviços e comércio internacionais, intercâmbios acadêmicos e científicos etc.) sempre, ou quase sempre, para reforçar o poder e a “necessidade” de organismos de controle da vida da pessoa e de associações livremente organizadas.

 

Essa “inspeção” da subjetividade, venha do Estado ou, de certo modo, da própria auto-exposição nas “redes sociais”, não é nada estranha às formas mais exaltadas (fundamentalistas) de religiosidade monoteísta assentada sobre poderosas instituições, que esperam completa absorção, pelos fiéis, das regras da religião. A religião mostra-se disposta a caminhar paralelamente aos processos sociais que levam as pessoas atingidas pelos conflitos internacionais por poder e dinheiro a abrirem, ainda que contra a vontade, as portas de suas vidas privadas e de suas almas. E isso porque se torna cada vez mais “razoável”, por motivos de “segurança nacional” ou de “lealdade grupal ou religiosa”, o escrutínio das convicções pessoais – para delícia de qualquer confessor...

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