Mônica Nogueira, Sandra Nascimento e Marcela Coelho de Souza
Que tempos são estes em que é preciso defender o óbvio? Sob o risco de soar clichê, tomamos de empréstimo a questão lançada por Bertold Brecht para intitular este artigo, como recurso expressivo para chamar a atenção à gravidade do momento que vivenciamos no Brasil.
Na próxima quarta-feira, 16 de agosto de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará processos da maior importância para povos indígenas e quilombolas. Durante a manhã, os ministros vão decidir sobre três processos relativos a terras indígenas, gerados com base no argumento do marco temporal, que defende que os povos indígenas só devem ter reconhecido e protegido o direito às terras que ocupavam fisicamente em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Os processos em julgamento são as Ações Civis Originárias (ACOs) 362, 366 e 469, relacionadas respectivamente ao Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso (criado em 1961), às terras indígenas dos povos Nambikwara e Pareci (em Rondônia e Mato Grosso) e à Terra Indígena Ventarra, do povo Kaingang, no Rio Grande do Sul. Nos três casos, áreas de terras indígenas já delimitadas estão sendo questionadas pelos estados, com base no argumento de que parte delas não seriam terras de ocupação tradicional dos povos indígenas.
Na tarde do mesmo dia 16, os ministros do STF analisarão a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 do Decreto 4.887, de 2003, que regula a titulação de territórios quilombolas. A ADI está em julgamento desde 2012 e foi movida pelo partido político Democratas (DEM). Uma decisão do STF pela inconstitucionalidade do Decreto 4.887 não só paralisará o andamento dos processos de titulação de territórios quilombolas, mas ameaçará também os já titulados. Mesmo ministros que já declararam votos contrários à ADI defendem o estabelecimento de um marco temporal para a titulação de territórios quilombolas. Sendo assim, o argumento do marco temporal tem sido defendido como aplicável a territórios indígenas e quilombolas.
A inadequada utilização de conceitos e categorias jurídicas tradicionais sobre a concepção de posse, ainda de influência civilista, tem orientado a defesa de que a posse, para gerar o efeito jurídico de demarcação ou titulação de terras, deva ser exteriorizada na data de 5 de outubro de 1988. Há dissenso sobre esse ponto. Primeiro, porque propositalmente o argumento do marco temporal desconsidera o histórico de esbulho sofrido pelos povos indígenas e quilombolas em relação aos seus territórios. Muitos desses povos e comunidades foram expulsos de suas terras, não raras vezes com uso de extrema violência e mesmo por iniciativa do próprio Estado brasileiro. A noção de posse presente, associada à proposição do marco temporal (em 1988), também nega o reconhecimento da diversidade de formas com que indígenas e quilombolas se relacionam, usam e ocupam seus territórios. No fundo, o argumento do marco temporal é resultado de um falso problema, sem evidência empírica de fraudes ou de eliminação de outros direitos relativos à sociedade não indígena.
Ademais, o debate público sobre o marco temporal foi superado pela Constituinte em 1987, por isso, as tentativas de retomar esse argumento são uma ofensa ao princípio do pluralismo étnico que fundamenta os artigos 215, 216 e 231 da Carta Magna, contrariam Convenções Internacionais sobre a matéria, das quais o Brasil é signatário, e atentam contra a democracia brasileira.
A votação conjunta das três Ações Civis Originárias e da ADI 3.239 é emblemática da agenda de ruralistas, que contam com forte representação em todas as esferas do Estado brasileiro (o Legislativo, o Executivo e o Judiciário). É parte do que Alfredo Wagner Berno de Almeida chamou de “agroestratégias”, para designar um conjunto de ações coordenadas numa ofensiva que visa, em última instância, aquecer o mercado de terras no Brasil, favorecer o avanço do agronegócio e do neoextrativismo predatório e de larga escala (a exemplo da mineração), além das obras de infraestrutura associadas (hidrelétricas, linhas de transmissão, rodovias).
Em julho deste ano, Michel Temer subscreveu um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), alterando a forma como a administração pública conduz as demarcações de terras indígenas em todo o país. O parecer estende as 19 condicionantes estabelecidas pelo STF na demarcação da TI Raposa Serra do Sol a todos os processos de demarcação ou revisão de limites de terras indígenas hoje em andamento, acionando também o argumento do marco temporal.
Além de paralisar processos de demarcação de terras indígenas, a medida já vem acirrando conflitos e disputas de terras no meio rural. O recado foi dado e fazendeiros e pistoleiros têm se mostrado bons entendedores. Todos os dias, canais de notícias alternativos (a conglomerados empresariais como a Globo) vêm veiculando notícias de conflitos armados e mesmo de chacinas de comunidades indígenas e quilombolas. A última dessas notícias, no dia 6 de agosto, foi o assassinato de seis quilombolas da comunidade de Iúna, em Lençóis, na Chapada Diamantina, Bahia.
A Universidade não pode se manter em silêncio frente à reiteração da profunda injustiça e violência que estruturam as relações da sociedade e do Estado brasileiros com povos indígenas e quilombolas. Com base nesse entendimento, um grupo de professora(e)s e pesquisadora(e)s da Universidade de Brasília, em diálogo com movimentos sociais, vêm mobilizando esforços para balizar o debate público e combater essa ofensiva aos direitos territoriais de indígenas e quilombolas. Uma dessas atividades é a Aula Magna e Ato em Defesa dos Direitos de Povos Indígenas e Quilombolas que será realizada nesta sexta-feira (11), às 14h, no Auditório Joaquim Nabuco, na Faculdade de Direito, campus Darcy Ribeiro. Nessa ocasião, renomada(o)s juristas, representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Confederação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) discutirão as teses e interpretações jurídicas em pauta nos julgamentos do STF, previstos para o dia 16 de agosto.
Convidamos a todas e todos – que, como nós, acompanham com preocupação a presente e situação e desejam contribuir com esse debate público – para estarem conosco nesta Aula Magna e Ato em Defesa dos Direitos de Povos Indígenas e Quilombolas. Oxalá, possamos assim fazer cumprir uma das funções da universidade pública: o exercício da crítica social.
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