Evandro Piza Duarte e Welliton Caixeta Maciel
As vítimas fatais da Covid-19 deixam de ser números (sub)notificados/subestimados e se tornam mais próximas. Todavia, a doença (e sua gestão) é tão avassaladora que nos priva do direito à liberdade, à livre circulação, de reunião, à respiração(1) e afeta nossas crenças e rituais de "passagem entre vida e morte"(2). Logo, ela nos impede de acreditar e confiar plenamente nos vivos, pois todos nos tornamos potenciais vetores de propagação do vírus. No mesmo passo, nos retira a possibilidade de chorar os corpos dos nossos mortos.
No contexto da pandemia, o corpo como centralidade do cuidado e do contágio tem gerado efeitos paradoxais. Contaminados, os cadáveres continuam sendo importantes na gestão da vida dos vivos, pois morrer, enquanto matéria ou essência, só interessa aos que ficam. Estamos aprendendo a isolar o corpo, a circular com a observância de estratégias para não disseminação, recorrendo a equipamentos tecnológicos, eletrônicos e digitais.
Com medo da contaminação do próprio corpo, inevitavelmente tropeçamos nos corpos racionalizados e transformados em estatísticas, antes distantes e agora tão próximos, corpos que ameaçam e, portanto, são descartados sem sequer serem chorados e velados. Mas, afinal de contas, por que se preocupar com esses cadáveres quando, diante do risco iminente de contágio, nem aos peritos de Institutos Médico Legais, aos agenciadores de serviços funerários e aos sepultadores e/ou coveiros recomendam-se manuseá-los?
Para muitos, não valem nada, sobretudo àqueles que se ocupam de dar curso à necropolítica(3) e ignoram os direitos do morto, sua proteção post-mortem envolvendo os direitos de personalidade – violação aos direitos à honra, à privacidade e à imagem. Os sujeitos mortos vão sendo esquecidos, com o apagamento de detalhes importantes da realidade social, de suas histórias, reduzidos a corpos abjetos, impuros e perigosos.
O modo como lidamos individual e coletivamente com o duplo vida e morte revela não apenas aspectos metafísicos (ontológicos, teológicos e suprassensíveis) no plano da filosofia, da história e da cultura, como também aspectos pragmáticos como a socialização e a sociabilidade dos indivíduos e seus corpos socialmente marcados, racializados e generizados, circunscritos de linguagens(4), contextualizados nos mais diversos tipos de sentidos rituais.
Como destacou Alfredo Bosi(5), do enterro dos antepassados emergem vínculos simbólicos das comunidades humanas e a descoberta da atividade de plantar. Daí o parentesco entre as palavras culto, cultivo e cultura. Lewis Munford(6), por sua vez, viu os locais de enterro como os pontos de paragem das rotas de grupos nômades, origem dos mercados e das cidades. Quase tudo que sabemos sobre a vida das civilizações decorre do modo como a morte tem sido (re)significada, falada, trabalhada, comercializada e vivida. A morte, ela mesma, é uma medida comum de riqueza e poder, expressa nas possibilidades de poder matar e de não morrer.
Todavia, o desaparecimento da experiência social da morte não nasceu com a pandemia de Covid-19. A vergonha da morte (e da velhice), como destacou Norbert Elias(7), acompanha o controle científico das doenças, a emergência da sociedade de consumo e a crença moderna no futuro. Aos poucos deixamos de conviver com o cadáver. O defunto fedendo na mesa da sala sai de cena e surgem os serviços funerários com seus caixões lacrados. O corpo morto desaparece, mas o corpo vivo é investido de novas dimensões sociais, quer por meio do registro contínuo de sua presença (a geolocalização de usuários) quer pelas memórias descartáveis da Internet.
Na crise, a gestão real da morte é feita no cotidiano. A relação entre ocupação do sistema de saúde, tempo de pandemia e qualidade da morte é bem óbvia. Leitos ocupados e profissionais cansados resultam em mortes anônimas e solitárias. A solidão dos moribundos é acompanhada do descarte dos cadáveres. A massificação do atendimento dos serviços funerários pode ser percebida pelo número de concursos públicos para coveiros ou pela necessidade de redesenhar os métodos de aberturas de valas.
Contudo, o que se percebe é a ausência de preocupação com as dimensões religiosas, éticas e políticas quanto a escutar o moribundo, velar e enterrar os cadáveres, acolher os familiares e construir memórias, o que, talvez, seja uma das pistas importantes para entendermos a razão pela qual o número de mortes aumenta em curva crescente, mas não sensibiliza uma parte da sociedade brasileira.
Diante disto, resta-nos refletir sobre os mecanismos sociais de (re)produção de (in)sensibilidades e romper esse estado de letargia política e moral. Quais seriam os novos instrumentos de gestão dos sentimentos e dispositivos de moralidade que garantiriam aos familiares e amigos o direito de chorar suas perdas? Não seria esse um caminho importante na luta sobre as narrativas do momento presente? Algumas reflexões que interpelam a ação social e política.
Notas:
(1) MBEMBE, Achille. Le droit universel à la respiration. Abril de 2020. Disponível em: https://aoc.media/opinion/2020/04/05/le-droit-universel-a-la-respiration/ .
(2) ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Tradução Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
(3) MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.
(4) BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
(5) BOSI, Alfredo; CAPINHA, Graça. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992.
(6) MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. Tradução de Neil R. da Silva, v. 2, 1982.
(7) NORBERT, ELIAS. A solidão dos moribundos, seguida de envelhecer e morrer. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
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Publicado originalmente em Justificando: Mentes inquietas pensam Direito em 13/5/2020
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