“Sem floresta, não tem condição. Sem rio, não temos peixe.” Esse é o resumo da luta do líder comunitário Francisco Firmino Silva, de 68 anos. Conhecido como Chico Caititu, ele é beiradeiro, nome usado para designar a população ribeirinha do oeste do Pará. Chico habita a comunidade Montanha e Mangabal, localizada na beira do rio Tapajós, palco de disputas territoriais antigas. A mais recente remonta a 2013, quando, por um aparente golpe de sorte, a região foi formalizada como Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Acompanhado pelo pesquisador Maurício Torres, Chico Caititu esteve em Brasília para palestra do Laboratório de Antropologias da Terra, na quarta-feira, 21. No encontro, falou sobre a aliança firmada com os Munduruku para a autodemarcação da região do Tapajós.
Montanha e Mangabal estão no meio do caminho do projeto do complexo hidrelétrico da Bacia do Tapajós (atualmente suspenso) que abrange os estados do Amazonas, Pará e Mato Grosso. Mobilizados junto com os indígenas, os beiradeiros conseguiram a formalização de um protocolo de consulta aos povos atingidos no processo de implementação da hidrelétrica. “Que tipo de brasileiros somos se o governo faz de tudo para tirar o que temos? Tudo o que temos está na terra”, protesta Chico. Agora, outras comunidades começam a produzir seus protocolos. “Nossa luta é muito importante. Temos de lutar e falar a verdade”, ressalta.
A formalização foi muito bem recebida pelos beiradeiros. Entretanto, apesar de garantir o uso da terra por eles, não veio acompanhada da demarcação. Sem ela, fica impossível conter os insistentes avanços ilegais de garimpeiros, grileiros, madeireiros e palmiteiros. Eles ameaçam não só o ecossistema que garante a vida dos beiradeiros, como também a própria vida da comunidade. Jurado de morte, Chico Caititu hoje vive em esconderijo.
As ameaças vieram depois da ação propositiva de Chico, empenhado em garantir o quinhão de terra em que sua comunidade se assenta. Ser beiradeiro é muito mais que uma descrição geográfica. Significa o modo de vida de uma comunidade agroextrativista nascida e crescida na floresta, um grupo étnico cujas raízes se fincam na história da colonização brasileira, na expansão para o norte, na corrida pela borracha e na interação (geralmente violenta) com a população indígena local.
Beiradeiros e indígenas, aliás, têm um histórico de distanciamento. Ambos vivem na floresta e da floresta. Compartilham ancestrais, mas não se viam como parceiros. Até que, impulsionados pela necessidade comum, resolveram superar as diferenças e estabelecer aliança. Chico participou da aproximação da comunidade de Montanha e Mangabal com o povo Munduruku para, juntos, realizarem a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. A empreitada levou dois meses e 18 dias.
A segunda leva de demarcação está em curso e deve durar 30 dias. Não é um processo feito em uma vez só. Os participantes são os próprios beiradeiros e os indígenas. O que significa que são pessoas que comem do que plantam e caçam. Então, quando dedicados ao mapeamento, não estão tocando seu cultivo. Por isso, o processo é feito em etapas. A primeira dessa nova leva começou em setembro. No total, serão 72km mapeados, em mata fechada, com umidade, calor, terreno de aclive, e fauna típica da região.
UNB MAIS HUMANA– O protagonismo de Chico, e sua vinda à Universidade, traz ao debate as questões ambientais e os direitos dos povos beiradeiros, ribeirinhos, indígenas, e de todos que vivem na floresta e da floresta. A temática dialoga com valores de tolerância, inclusão, cultura de paz e respeito aos direitos humanos promovidos na UnB pela campanha UnB Mais Humana. Em celebração aos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a UnB dedicará atividades ao longo de 2018 para promoção dos direitos celebrados na carta.
Maurício Torres destaca que o esforço de Chico e dos moradores da comunidade de Montanha e Mangabal é uma luta política sobre o direito à terra, à sobrevivência. “O Estado faz compromisso de preservar, mas não cumpre”, afirma, em referência à inação do Incra. Chico descreve o instituto como o “maior irresponsável”, visto que não assumiu as ações da demarcação da terra, nem a segurança da comunidade, constantemente ameaçada pelos extratores ilegais.
Segundo relatório de 2017 da ONG britânica Global Witness, cerca de 200 ambientalistas foram mortos em 2016, em 24 países. Destes, 49 assassinatos ocorreram no Brasil, que lidera o ranking. A maior parte das mortes está relacionada a disputas por terras com grileiros e madeireiros em estados da Amazônia.
Sobre as ameaças, Chico diz não ter medo da morte propriamente dita: “Todos sabemos que vamos passar pelo processo de morte, mas morrer de morte matada na luta é muito triste”.