JORNALISMO CIENTÍFICO

Relembre matéria da edição 17 da revista Darcy sobre migrações no Brasil. Conteúdo celebra o 18 de dezembro, data promulgada pela ONU em homenagem às populações nestas condições

Dossiê da Darcy 17 mostra como a UnB vem contribuindo para os estudos sobre migrações no Brasil. Arte: Secom UnB

 

Dados do Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra) levantados a partir de registros da Polícia Federal apontam que o Brasil já possui cerca de 1,3 milhão de imigrantes residentes. Destes, 60 mil são reconhecidos como refugiados pelo governo brasileiro, a maioria da Venezuela (48.789), Síria (3.667), República Democrática do Congo (1.448) e Angola (1.363). Em 2021, 29.071 pessoas de 117 países solicitaram o reconhecimento desta condição no território brasileiro – 3.086 pedidos foram confirmados –, segundo o relatório Refúgio em Números. Os imigrantes no mercado de trabalho formal no país já somam 180 mil.

Este domingo, 18 de dezembro, marca o Dia Internacional dos Migrantes, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em reconhecimento às contribuições culturais, econômicas, sociais para diferentes países e aos direitos desta população. Em lembrança da data, o UnBNotícias publica matéria da edição 17 da revista Darcy. O conteúdo, lançado em 2017, vai a fundo na discussão sobre migração no Brasil e os impactos deste processo para quem o vivencia diretamente, além de apontar pesquisas e iniciativas da Universidade dedicadas ao tema.

 

Confira abaixo o Dossiê completo: 

Epitaciolândia, no Acre, fronteira com a Bolívia, registrou em três anos aumento de 718,97% no número de imigrantes haitianos. Em 2012, cerca de 2,6 mil pessoas vindas do Haiti entraram no país pela cidade, que é contígua à boliviana Cobija, às margens do rio Acre. Já em 2013, o total de haitianos saltou para mais de 9,6 mil. Em 2015, chegou a 18,6 mil, ultrapassando a população local de brasileiros, de 17.038 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2016.

Inaugurado em 2013, o Observatório de Migrações Internacionais (OBMigra) da Universidade de Brasília surgiu como resposta à entrada significativa, em território brasileiro, de imigrantes do chamado Sul Global. Mas vai além para examinar as parcelas da população mundial que se deslocam. “Temos a missão de aprofundar o conhecimento sobre as migrações internacionais no Brasil e na América Latina”, explica Leonardo Cavalcanti, que está à frente de equipe formada por 14 pesquisadores de diferentes áreas do saber, como Sociologia, Demografia, Estatística, Antropologia e Ciência Política.

Um dos projetos abrigados pelo Laboratório de Estudos sobre Migrações Internacionais (Laemi), o OBMigra é responsável pela produção dos dados oficiais sobre migração no Brasil. O observatório publica trimestralmente relatórios a partir de pesquisas em registros administrativos, produz um relatório anual e incentiva a produção de artigos científicos para revistas internacionais indexadas.

BOOM DA IMIGRAÇÃO – Um terremoto de magnitude 7 na escala Richter atingiu o Haiti, menor Produto Interno Bruto (PIB) das Américas, em janeiro de 2010. Estima-se que ao menos 3 milhões de pessoas tenham sido atingidas e 250 mil tenham morrido. Segundo relatório do OBMigra e da Organização Internacional para as Migrações (OIM), 58 mil haitianos entraram no Brasil depois do episódio.

Quando o OBMigra foi criado, acontecia o boom da imigração de haitianos. O município acreano de Epitaciolândia foi um dos principais pontos de entrada no Brasil. Os trabalhos do observatório mostraram que a maioria deles se deslocava para as regiões Sul e Sudeste em busca de emprego. “Pudemos ajudar a compreender melhor o tipo de migração que estava acontecendo”, explica Tânia Tonhati, pesquisadora do OBMigra.

Grande parte foi empregada em frigoríficos, setor da economia com alta rotatividade, trabalho pesado e insalubre. “Esses haitianos ocuparam um espaço que estava sendo deixado de lado pelos brasileiros. Nosso trabalho conseguiu mostrar a necessidade de mais cuidado com as garantias desses trabalhadores”, afirma a pesquisadora.

A análise dos bancos de dados e a realização de pesquisas qualitativas possibilitaram perceber a dificuldade dos estrangeiros em obter a carteira de trabalho. Eles somente podiam requerê-la em postos gerenciados pelo Ministério do Trabalho (MTb),não sendo atendidos e serviços expressos.

“Nós influenciamos a resolução que abriu a possibilidade da requisição por estrangeiros nos locais em que os brasileiros eram atendidos”, assegura Leonardo Cavalcanti. “Certamente não determinamos as políticas, mas nossa presença em órgãos do governo e as informações que provemos desempenham um papel relevante na formulação das políticas públicas.”

Além de indicar os setores em que estavam empregados, a pesquisa do OBMigra mostrou que o número de imigrantes não é exorbitante. Quando comparado à população do país, eles correspondem a menos de 1% da população. Países como Cabo Verde e Canadá têm a migração como ponto tão central da política que possuem ministérios para tratar do assunto.

SEM MUROS – O observatório faz parceria com organismos não governamentais e universidades no Brasil e no exterior. O pioneirismo do projeto é reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no documento sobre Migrações e boas práticas, quando realça a importância de analisar fenômenos sociais complexos, como é o caso das migrações internacionais. O observatório é frequentemente convidado a realizar estudos e consultoria para organismos que não podem ter acesso aos dados por questões de segurança.

A uruguaia Delia Dutra pesquisa principalmente a migração feminina e tem buscado, juntamente com a equipe do observatório, estudar os fenômenos migratórios numa perspectiva latino-americana. “Temos trabalhado em uma análise sociológica sobre a inserção dos imigrantes no mercado formal de trabalho”, ressalta.

Com a consolidação do observatório, outras parcerias foram construídas, como a criação do Grupo de Trabalho Migración Sur-Sur, com universidades da América do Sul e o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). Nesse GT são estudados fenômenos relacionados à migração Sul-Sul, que via de regra era menos intensa que a Sul-Norte.

Além do MTb, o observatório é parceiro de outros órgãos do governo federal, como o IBGE e o Ministério da Justiça. “Nossa equipe de estatística está no IBGE do Rio, e cerca de uma vez por mês nos reunimos para discutir o que tem sido feito, principalmente em termos de padronização de procedimentos”, conta Felipe Quintino, pesquisador da área de Estatística associado do OBMigra.

Atualmente, o observatório trabalha com o banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e com informações da Polícia Federal e do IBGE. A expertise do projeto ainda inspira instituições de outros países, que buscam parceria para tratar seus dados com mais segurança. O OBMigra não tem acesso aos dados pessoais dos imigrantes, somente aos que permitam montar perfis de estudo, como idade, sexo, país de origem, por exemplo.

“Já fomos procurados por outros países para entender como o Brasil faz tratamento dos dados”, conta Cavalcanti. A atuação dos pesquisadores promove não apenas pesquisas quantitativas, fomenta também reflexões sobre os significados por trás dos números. “Somos muito convidados a opinar e falar sobre a temática”, garante Tânia. O OBMigra propõe-se a criar novos discursos em lugar de importá-los, porque a situação do Brasil é particular: “Construir muros não se aplica ao nosso país, nem criar barreiras para a entrada dos imigrantes, uma vez que nós não atraímos tantos”.

Dados apontam número de estudantes imigrantes da UnB e seus países de origem. Arte: Secom UnB


VERBETES EM TRÂNSITO – O OBMigra vai publicar o Dicionário crítico de migrações internacionais pela Editora UnB. O projeto conta com a participação de mais de 150 autores brasileiros e estrangeiros e procura abarcar o conhecimento multidisciplinar sobre o tema. Um dos conceitos básicos é o de língua de acolhimento, que nasceu em Portugal.

Estudo realizado por Lúcia Barbosa, em parceria com Mirelle São Bernardo, do Instituto Federal de Goiás (IFG), mostra que a língua de acolhimento é como uma ligação entre língua e cultura. Ela é um processo que envolve não só o conhecimento linguístico estrutural de uma língua, mas também variantes sociais e elementos culturais intrínsecos ao pensamento humano, transformados pela língua e transmitidos por meio dela.

Tuíla Botega, pesquisadora associada e uma das responsáveis pela edição do livro, frisa que o objetivo do Dicionário crítico é prover os pesquisadores de um volume a que possam recorrer quando necessitarem de algo temático e conciso sobre migrações. Para tanto, os coordenadores do projeto convidaram pesquisadores a escrever os verbetes dentro de um número predefinido de palavras. “Essa estratégia é para que a conceituação não vire um trabalho muito extenso, que foge ao nosso escopo. A ideia é ter um volume à mão, que possa ser usado instantaneamente”, diz Tuíla.

Saiba quais são os cursos mais procurados por estudantes estrangeiros na UnB. Arte: Secom UnB


MUDANÇA DE HÁBITO – O ensino do português como língua de acolhimento na Universidade de Brasília teve início em 2013 e até o momento mais de 400 alunos passaram pelo projeto do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Português para Estrangeiros (Neppe). No primeiro semestre de 2017, estudantes de 17 nacionalidades estavam matriculados no curso. Haitianos representavam cerca de 33% do total, seguidos por ganeses, paquistaneses e sírios. Havia também alunos do Congo, Togo, Turquia e Venezuela. A maioria possuía ensino médio completo, muitos, ensino superior e alguns, pós-graduação.

As matrículas de estrangeiros são em fluxo contínuo. De acordo com os registros de 2017, dos 115 alunos matriculados apenas 24% eram mulheres. Esse cenário manteve-se constante ao longo da existência do projeto. Sempre mais homens do que mulheres. Ao notar que muitas alunas não se sentiam à vontade para participar das aulas e ficavam caladas, foi criada uma turma especial somente para mulheres. 

Lucie (ela prefere não revelar o sobrenome), aluna do curso para mulheres, teve que deixar o Congo depois que o marido sofreu ameaças do governo. Suas maiores dificuldades são a língua, o valor do aluguel e as saudades da família. Hoje separada do marido, a estudante do Neppe trabalha em um restaurante durante o dia e está juntando dinheiro para trazer a filha para Brasília.

No Congo, ela dava aula de moda e costura para outras mulheres. A experiência de trabalho no país de origem não foi suficiente para conseguir emprego no Brasil. Ela se esforça para participar das aulas de português. “Eu procuro primeiro estudar aqui na UnB, depois não sei. Meu sonho é estudar moda; não tenho interesse em cursar outra coisa”, diz. Para complementar a renda, faz serviços informais de costura, criando modelos e consertando roupas. Ela pretende voltar a trabalhar na área e ganhar dinheiro para construir uma nova vida.

A língua é uma das primeiras barreiras que o imigrante, especialmente o refugiado, encontra ao chegar ao novo país. O aprendizado da língua e da cultura do novo país favorece a inclusão social e profissional desses novos moradores. É uma extensão entre quem chega e quem já mora no país, por proporcionar trocas culturais. Por esse motivo, é necessária a facilitação do acesso a esse aprendizado para o imigrante, em um ambiente de acolhimento e hospitalidade.

“Isso implica não somente desenvolver a habilidade linguística, como também expandir o conhecimento da cultura e a capacidade de interação”, afirma a coordenadora do Neppe, Lúcia Barbosa. “É fundamental considerar as experiências trazidas pelos aprendentes, pois elas são cheias de significação na sociedade de acolhimento, nas ruas, praças, no trabalho e nas salas de aula.”

O trabalho do Neppe no ensino de português para estrangeiros diferencia-se por abordar o ensino como língua de acolhimento. Isso exige métodos e conteúdos voltados para a adaptação das pessoas, não só o aprendizado do idioma. “Eles chegam com demandas além da comunicação. É acolhimento de imigrantes em situação de refúgio”, esclarece Lúcia.

Para permitir ao migrante acesso imediato, as inscrições nos cursos nunca fecham. O aluno pode ingressar no mesmo dia em que chega e participar das aulas normalmente. Além das lições regulares de português, os estudantes também recebem orientação quanto a questões cotidianas do Brasil: como se portar em entrevistas de emprego e como abrir conta em banco. Para problemas trabalhistas, o Neppe realiza parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e a Faculdade de Direito da UnB.

Em 2017, o projeto conseguiu fechar acordo com o Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans), o que permitiu acesso ao Passe Livre Estudantil. “Ajuda a evitar a evasão”, constata a professora Lúcia Barbosa. A doutoranda da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Eleonora Boltura veio fazer doutorado sanduíche no núcleo para imigrantes e tornou-se professora da turma feminina.

A turma é heterogênea em termos de proficiência. “Elas queriam saber sobre família, papéis dentro da família e debates ao redor disso, além da curiosidade sobre nosso mercado de trabalho”, revela. A professora decidiu juntamente com as alunas o que elas achavam necessário aprender e só então montou o plano de curso. “Uso papéis com perguntas. Uma tira um papelzinho para a outra e assim elas fazem perguntas, conversam e interagem entre si.” 

Por meio de temas pré-escolhidos, a professora tenta estimular o diálogo sobre assuntos mais elaborados. A tática deu resultado. “No início elas entravam caladas, hoje uma já começa perguntando como foi o fim de semana da outra”, comemora Eleonora.

Projeto do Neppe atendeu 115 alunos de 17 nacionalidades em 2017. Arte: Secom UnB


DESLOCADOS DE AMBIENTE – Enchentes, tufões, ciclones, vulcões, tsunamis, terremotos e maremotos são causas naturais que podem obrigar as populações a migrar. A poluição, o desflorestamento, as guerras e o estabelecimento de áreas ambientais são fatores humanos que levam ao mesmo efeito. A migração internacional induzida por desastres ambientais e aquela causada pela própria exploração humana constituem um fenômeno com potencial para gerar até um bilhão de deslocados. O fenômeno intensificou-se nas três últimas décadas e agrava-se quando muitos países do mundo restringem as políticas migratórias em seu espaço geográfico.

As ilhas Tuvalu, Marshall, Fiji, Salomão, Papua Nova-Guiné – cercadas pelo Pacífico – e as Maldivas – no Oceano Índico –, podem perder grandes parcelas ou a totalidade do território em função do aumento no nível do mar devido ao derretimento das calotas polares pelo fenômeno do aquecimento global. Tuvalu e seus pouco mais de dez mil habitantes, segundo cálculos, podem não sobreviver ao próximo século.

Pós-doutoranda do Instituto de Relações Internacionais (Irel), Carolina Claro explica que, diante da mudança e da variabilidade climática global, a projeção de migrantes induzidos ao deslocamento tem sido objeto de preocupação nos fóruns internacionais, entre países e sociedades mais afetados.

“O esperado é que, com as mudanças climáticas, a intensidade de enchentes em áreas já alagadas aumente e haja falta d’água em locais já desertificados”, prenuncia. Se a população mundial cresce, o modo de vida e o modelo econômico provocam escassez de recursos e há uma intensificação dos conflitos sobre o tema, crescem cada vez mais as massas populacionais forçadas a migrar de seus países por problemas ambientais.

Segundo Carolina Claro, essas pessoas são incluídas na categoria de “em estado de refúgio ambiental”, e também são conhecidas como refugiados ambientais. “Todo mundo está procurando a sua sobrevivência e esse talvez seja o instinto humano mais aguçado que temos. Essa busca não conhece fronteiras políticas, apesar de elas dificultarem o trânsito de pessoas”, sinaliza Carolina, que abordou o tema na dissertação de mestrado Refugiados ambientais: mudanças climáticas, migrações internacionais e governança global.

Organismo responsável por dirigir e coordenar a ação internacional para proteger e ajudar pessoas deslocadas em todo o mundo, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) aponta que é refugiado quem se encontra fora do país por causa de “fundado temor de perseguição” e que não possa (ou não queira) voltar para casa, pessoas obrigadas a migrar devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos.

O refugiado ambiental não é reconhecido, não dispõe de proteção jurídica. “Se ele não tem reconhecimento, esse refugiado não vai ser objeto de política pública em país nenhum”, lamenta a pós-doutoranda. Ela adota em seus trabalhos o termo refugiado não convencional. E ressalta: “Isso deveria significar que ele precisa de abrigo e proteção”.

No pós-doutorado, Carolina procura descobrir como as instituições atuam na questão do refugiado ambiental. Ela analisa a existência de governança ambiental e global sobre migrações e meio ambiente. Ou seja, se há uma infraestrutura de normas, instituições e princípios sobre os refugiados ambientais. Hoje, não existe nenhuma instituição reguladora que atue nessa questão. O Acnur somente admitiu a existência de pessoas que precisam deixar o lugar de origem por causas ambientais em 2005.

“Quando os haitianos chegaram, começaram a pedir refúgio no Brasil pelos desastres ambientais. O problema é que a legislação brasileira não categoriza refúgio causado por desastres ambientais”, esclarece Carolina Claro. Os desabrigados ambientais não são considerados suscetíveis a receber refúgio de acordo com a convenção da ONU sobre estatuto dos refugiados, de 1951, nem sob a Lei 9.474, de 1997. “O nosso governo não sabia o que fazer com esses haitianos. Apesar de sermos um país com população de números consideráveis, não estávamos habituados com tanta gente entrando no país”, diz a pós-doutoranda.

CASOS OMISSOS – A pesquisadora Nayara Belle analisou no mestrado defendido em dezembro de 2016 os registros administrativos do controle migratório da Polícia Federal (PF). O Sistema Nacional de Cadastramento de Registro de Estrangeiros (Sincre) serviu como base para a dissertação e continuará a ser utilizado em seu doutorado no Programa de Pós-graduação em Geografia. “O mais relevante foi a descoberta do número de casos omissos. De 2011 para 2014, o número quase quadruplicou”, revela Nayara.

Os casos omissos a que a doutoranda se refere são principalmente os haitianos estudados por Carolina Claro. “A PF tem um código para cada tipo de refugiado e para os migrantes ambientais não havia nada no início. Hoje eles recebem um visto humanitário, que lhes permite gozar das mesmas benesses que o refúgio.” O visto humanitário engloba a situação vivida no Haiti. “Um desastre aconteceu, agravou a situação de vida no país e levou à migração em massa”, detalha Carolina.

Quando o imigrante é documentado, a situação de vulnerabilidade diminui. Ao passar pela triagem dos centros de saúde, pode apresentar documentação. “Muitas vezes quem não é regularizado só tem um passaporte vencido ou algum documento do país de origem, e os funcionários dos hospitais acabam não aceitando. Erroneamente, porque não deveriam barrar o atendimento por conta disso”, afirma Carolina Claro.

O estrangeiro sem documentos tem medo de procurar a Polícia Federal, órgão competente, no Brasil, para regularizar a situação migratória. O principal receio é o de que a polícia o prenda e o deporte. “E como é que você vai matricular uma criança na escola sem documentos? É muito difícil, principalmente nas cidades de interior ou cidades de fronteira, onde a imigração é uma coisa diária e muito difícil de controlar”, explica Carolina.

A Resolução 97/2012 do Conselho Nacional de Imigração tem a intenção de regularizar a situação dos haitianos. O Brasil foi um dos primeiros a conceder o visto humanitário e aceita que a requisição seja feita ainda no país de origem. Porém, no caso de registro como refugiado, é preciso estar dentro das fronteiras do país.

O Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (Caep) da Universidade de Brasília possui iniciativas voltadas para as populações migrantes, tanto internas quanto externas. Desde o início de 2017, o centro oferece, em parceria com a Diretoria de Desenvolvimento Social, atendimento psicossocial aos alunos que vêm de fora de Brasília, principalmente em decorrência do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

A pós-doutoranda Raquel Hoersting, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações, oferece um estágio no Caep em que estudantes avançados do curso de Psicologia têm a oportunidade de atuar em questões relacionadas à transculturalidade, em atendimento a migrantes externos.

Adicionalmente, Raquel coordena um grupo de apoio à comunidade que trabalha com migrantes e refugiados. “Trabalhamos um pouco com a Acnur e outras agências. Oferecemos suporte às pessoas que cuidam dos migrantes”, explica.

O grupo formou-se há dois anos. A participação de pessoas de fora da Psicologia intensificou-se, por se tratar de uma área muito interdisciplinar. Hoje o grupo de apoio aos profissionais aceita novos membros no início de cada semestre.

MIGRAÇÃO COMO IDENTIDADE NACIONAL – Famílias que ultrapassam as fronteiras de um país são chamadas, por convenção, transnacionais. A professora Andréa Lobo, do Departamento de Antropologia da UnB, não gosta do termo, porque ele pressupõe uma diferenciação das famílias: “Essa terminologia parte do princípio de que as famílias de migrantes são distintas, como se houvesse um tipo correto de família”.

Em Cabo Verde, país que Andréa estuda desde a década de 1990, com ênfase em migrações desde 2003, a reflexão é mais séria ainda por ser uma sociedade em que a migração é muito forte. “É um traço identitário do país. Ser migrante traz, além das recompensas financeiras, status.” Trata-se de uma questão tão central para Cabo Verde que o país possui um Ministério de Migração. Faz parte da política cabo-verdiana oferecer incentivos econômicos para que o migrante invista dinheiro no país.

Na ilha da Boa Vista, foco da tese de Andréa, há a prevalência desse fenômeno nacional. Ao contrário do restante do país, nessa ilha a migração é predominantemente feminina. “São mulheres que têm o plano completo e seguem, na maioria das vezes, redes já estabelecidas”, explica Andréa.

O plano completo para o migrante consiste em cruzar as fronteiras, legalizar-se, ter um trabalho, juntar e enviar dinheiro para casa; e mais tarde, construir uma casa no país de origem, aposentar-se e retornar. Porém, o índice de sucesso da empreitada é baixo. A maioria das mulheres da ilha da Boa Vista volta antes. Entre os principais motivos estão: não conseguir resolver a situação legal no novo país, não arrumar emprego, saudades de casa ou um filho adolescente que foi deixado para trás e começa a dar problemas.

Algumas não voltam. Ficam a vida toda no novo país e conseguem motivar os filhos já adultos a migrar também. “São casos de pessoas que reconstituíram a vida familiar no país de migração”, afirma a pesquisadora. Outras voltam e constroem a casa com alguma economia. Montam um pequeno negócio e ficam vivendo no seu país de origem. Um cidadão cabo-verdiano que queira abrir um negócio precisa pagar taxas que o migrante de fora do país não necessita recolher.

A tese dela deu origem ao livro Tão perto, tão longe. Ela dedica um dos capítulos a explicar a relação entre adolescentes e suas mães migrantes. Na ilha estudada, é comum que as mães migrem e os filhos fiquem com a família da mãe ou com o pai. O pai não tem o papel de cuidador, que é reservado à avó materna. Criar o filho a distância gera status. “Às vezes, mesmo sendo filho de família muito pobre, o adolescente está com um tênis do último modelo. Assim que recebe o presente, ele vai para a praça mostrar.”

Nas entrevistas que a pesquisadora fazia, ela ouvia muito o termo olhos abertos como referência ao migrante. Morar fora tem um valor simbólico que vem de falar outra língua, ter outras experiências e é isso que está intrínseco na expressão. O status da pessoa de olhos abertos passa para a família e até para os vizinhos, desde que ela cumpra o papel de manter a proximidade e os laços, mesmo a distância. Isso se dá por meio de contatos regulares, enviando presentes e dinheiro.

A maneira com que a professora se entrosou no grupo que queria pesquisar foi inusitada. Andréa relata que, ao longo das atividades de pesquisa, as pessoas começaram a se incomodar com o fato de a pesquisadora “não ter trabalho” e começaram a procurar emprego para ela. “Você não pode ficar o dia inteiro simplesmente matando tempo, batendo papo porque não tem coisa melhor para fazer”, lhe disseram.

Nessa mesma época, foi inaugurado o primeiro colégio de ensino médio da Boa Vista. Antes, quem quisesse prosseguir com os estudos precisava ir para outra ilha. “Fiz um acordo com o diretor, que precisava de professor de Sociologia: eu daria aulas desde que ele não contasse aos outros que eu não receberia”, conta Andréa.

Inesperadamente, algo que ela não planejou virou uma excelente estratégia de pesquisa. Os alunos tinham entre 15 e 16 anos e eram, em sua maioria, filhos de mulheres migrantes. “E como eles não precisavam ser tão formais comigo quanto com os outros professores formados em Portugal, acabamos criando proximidade.”

Na época, uma novela juvenil era moda entre os alunos. “Eles sempre perguntavam muito, eram curiosos”, lembra. Uma vez a professora andava pela rua quando ouviu: “Ei, galera!”. Olhando para os lados, ela constatou que estava sozinha. “Ei, galera! Tudo bem?”, repetiu um de seus alunos. “Você está falando comigo?”, perguntou a professora. “Sim, aprendi na novela.”

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