“Mãe, eu não consigo ficar quieto”. A frase, repetidas inúmeras vezes por Vinícius, de oito anos, hoje é relatada por Tatiane Gabriel com um sincero e emocionado sorriso. Há dois anos, o garoto curioso, de boa memória, carinhoso e muito apegado à família foi diagnosticado com transtorno do espectro autista leve e déficit de atenção.
A recepcionista conta que percebia sinais desses transtornos do neurodesenvolvimento desde quando o filho era pequeno, como a repetição gestual e na fala, a sensibilidade ao barulho e a dificuldade para dormir e ir ao banheiro.
“Os traços ficaram mais evidentes a partir dos dois anos de idade, quando ele começou a ir para a escola. Procurei apoio médico e pedagógico e, na época, me disseram que isso poderia estar relacionado à maturidade dele, que era filho único”, desabafa.
Pela ausência de diagnóstico, a família vivenciou experiências traumáticas. Tatiane não segurou as lágrimas ao comentar que precisou mudar Vinícius de sala, no jardim de infância, porque a professora insistia em dizer que a criança não iria aprender, chegando a afastá-lo do convívio com outros alunos.
“Ela falava que ele era esquisito, que tinha problema, que falava sozinho. Ela conversava alto com o meu filho e isso o deixava muito nervoso. E a gente se sente muito mal também. Foi o momento em que procuramos outro caminho”, relembra.
Evitar que situações como essas se perpetuem é a missão do Projeto Alavancar, iniciativa de extensão vinculada à Faculdade de Medicina da UnB que conta com o apoio de profissionais do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e voluntários de áreas da pediatria, psiquiatria, psicologia clínica, neuropsicologia e pedagogia.
Desde 2016, as ações abrangeram cerca de 200 pacientes em atendimentos regulares com uma equipe multiprofissional para o acompanhamento de crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizado e baixo rendimento escolar que podem estar relacionados aos chamados Transtornos do Neurodesenvolvimento (TND).
O grupo ainda oferece apoio em psicoeducação aos familiares, com orientações sobre como lidar com as dificuldades da criança e estabelecer uma comunicação efetiva com a escola. Eles também são informados sobre a rede de apoio local, benefícios previdenciários e direitos específicos nas áreas de saúde e educação.
ACOMPANHAMENTO – Corina Bontempo, uma das idealizadoras do projeto, argumenta que a condição de cada criança e adolescente é influenciada não apenas pelos aspectos cognitivos ou relacionados à saúde, mas por fatores sociais, emocionais e pedagógicos aos quais eles estão submetidos, sendo fundamental considerá-los.
“O primeiro passo é traçar a situação dessa criança na família, na escola, na sociedade. Quais foram as oportunidades sociais para o aprendizado? Houve condições favoráveis? Quais são as dificuldades específicas?”, exemplifica a pediatra.
Os pontos evidenciam o caráter multidisciplinar do projeto e as interfaces construídas entre a pedagogia, a psicologia, a assistência social e a medicina. A integração contribui para a construção de um diagnóstico diferenciado para cada caso, com a discussão e a sistematização das intervenções necessárias pelo grupo de profissionais. Depois, a família recebe um relatório médico detalhando a avaliação, direcionado também à escola da criança ou do adolescente.
Docente da Faculdade de Medicina (FM) da UnB, Lisiane Seguti enfatiza que a área médica não pode ser reduzida ao exercício de fazer diagnósticos, sendo dever de todo profissional enxergar o paciente em sua amplitude, ouvi-lo e tratá-lo da forma mais acolhedora e integrada possível.
Neste sentido, a professora da área de Medicina da Criança e do Adolescente (MCA) aponta que o projeto Alavancar quebra paradigmas ao oferecer um olhar único e diferenciado, valorizar a interdisciplinaridade e desfazer “a falsa onipotência que permeia o ensino médico”.
Na visão de Seguti, a perspectiva ganha ainda mais força nos diagnósticos que envolvem os transtornos de neurodesenvolvimento, pois eles são essencialmente clínicos. Significa dizer que, na maioria das vezes, dispensam a requisição de exames complementares ou a utilização de tecnologias mais complexas. Dessa forma, o médico – e o ensino da medicina – precisa voltar-se fundamentalmente para a “importância de bem auscultar o seu paciente”.
A neuropsicóloga e voluntária do projeto Susana Gatto exalta o pioneirismo e a qualidade do trabalho feito pelo Alavancar. Ela afirma desconhecer, no Distrito Federal, outro lugar que lance esse olhar complexo para tantas dimensões da vida de um indivíduo, sejam elas contextuais, estruturais, comportamentais, emocionais ou cognitivas.
“Não é um lugar onde se faz exames. É um jeito de olhar para as pessoas, de considerar vidas, famílias, realidades. São as maneiras de encaminhá-las. Estamos falando, por exemplo, de famílias extremamente pobres que após a devida orientação conseguem fazer exame genético para investigar suas condições e particularidades. Isso é transformador”, exclama Gatto.
DESAFIOS – A sensibilidade de olhar para além do técnico ou do aparente impulsionou os primeiros passos do Projeto Alavancar. Ao acompanhar um caso de dificuldade de aprendizado, Corina Bontempo foi à escola frequentada pela criança, na região administrativa do Varjão, no Distrito Federal. Chegando ao local, ouviu dos professores sobre muitos casos similares.
“Estou falando de mais da metade das crianças do terceiro ano do nível básico que não conseguiam ler. Havia aspectos estruturais e sociais, sim. Mas também era nítida a necessidade de aprofundar as investigações sobre o desenvolvimento dessas crianças”, relata a doutora em Medicina Preventiva pela USP.
Especialistas atestam que as condições frequentes de repetências e defasagens têm repercussão emocional bastante negativa para as crianças e suas famílias, contribuindo significativamente para a evasão escolar e para a piora das condições de vulnerabilidade experienciadas por essas pessoas. “Criam-se estigmas, como se fossem um fracasso individual, uma condenação”, frisa Susana Gatto.
Todavia, a demanda que chega ao Projeto Alavancar é infinitamente maior do que as possibilidades de atuação dos profissionais, que mencionam a necessidade de maior apoio e capilaridade institucional para a iniciativa e convocam outros setores da Universidade a colaborarem.
Na opinião da professora Lisiane Seguti, “o Alavancar existe por teimosia, persistência e pelo combustível da utopia de seus participantes, sobretudo da professora Corina”. A docente narra que o grupo dividiu os custos, por exemplo, das planilhas com os testes de desempenho escolar e de avaliação neuropsicológica.
“A Universidade pode contribuir para o projeto por meio do reconhecimento da sua importância, sensibilizando os gestores, viabilizando parcerias e permitindo maior integração entre professores, alunos e servidores da própria UnB”, analisa Seguti.
Todavia, o principal desafio é possibilitar que os pacientes atendidos sejam inseridos em programas de intervenção com equipe multidisciplinar, pois a ação no HUB contempla predominantemente a fase inicial de atendimento, ou seja, o processo avaliativo. Seguti sugere sobre o papel das políticas públicas para essa continuidade: “o paciente precisa seguir o tratamento proposto, de preferência próximo à sua casa, o que nem sempre é possível”.
Atualmente, a médica pediatra e professora Danielle Barbas coordena as ações do ambulatório multidisciplinar de distúrbios de aprendizagem da Faculdade de Medicina da UnB – área que abrange o projeto de extensão Alavancar. A homeopata destaca a importância do olhar sistêmico e complexo da especialidade para o tratamento das crianças e adolescentes atendidos.
Segundo a docente, a homeopatia pode ser usada como tratamento único ou de forma coadjuvante com o intuito de reduzir da quantidade de medicações simultâneas e ainda evitar a farmacodependência.
“É uma ferramenta muito valiosa, cada vez mais importante no SUS. A homeopatia individualiza as pessoas, buscando cuidar dos sintomas daquele paciente em específico. No caso dos distúrbios de aprendizagem, uns têm mais hiperatividade, outros mais desatenção. Vamos olhar para essas peculiaridades e isso ajuda bastante”, relata.
Saiba mais sobre os Transtornos do Neurodesenvolvimento:
Transtorno Específico da Aprendizagem (TA)
Manifesta-se em crianças com nível intelectual normal, afetando habilidades escolares como leitura, escrita e matemática. A dislexia relaciona-se à dificuldade de decodificação de palavras e fonemas enquanto a discalculia afeta a capacidade de realizar e reconhecer cálculos e fazer uma representação mental de quantidade.
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)
A síndrome caracteriza-se por níveis inadequados de manutenção da atenção. Leva a distúrbios motores, perceptivos, cognitivos e comportamentais. Entre os sintomas estão a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade. O diagnóstico é baseado na avaliação clínica de profissionais de saúde.
Transtorno do Espectro Autista (TEA)
Definido por algum grau de comprometimento na comunicação, na linguagem ou no comportamento social e pelo interesse em atividades estritas, realizadas de forma repetitiva. Na maioria dos casos, as condições são perceptíveis já nos primeiros anos de vida.
Deficiência Intelectual (DI)
Diminuição de habilidades em várias áreas de desenvolvimento, como o funcionamento cognitivo e o comportamento adaptativo. A condição reduz a capacidade de adaptação às exigências diárias da vida.
Déficit do Processamento Auditivo Central (DPAC)
A condição não é classificada como um transtorno específico, mas um sintoma que pode acompanhar outros TNDs. Consiste na dificuldade de compreensão completa ou rápida das informações auditivas recebidas, sem que exista uma alteração auditiva propriamente.
Fonte: Cartilha do Projeto Alavancar e Opas/OMS.
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