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Ex-secretário de Segurança Pública do DF, Arthur Trindade aponta omissão e inação por parte das autoridades públicas em 8 de janeiro. Confira a conversa

Docente do Departamento de Sociologia, Arthur Trindade acredita que medidas, como prisão dos mandantes e financiadores dos atos antidemocráticos, devem ser tomadas para evitar novos ataques. Imagem: Reprodução/UnBTV

 
Golpistas que não aceitaram a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro nas urnas invadiram e depredaram os edifícios da Praça dos Três Poderes no último 8 de janeiro, em Brasília. Chamou atenção a pouco resistência do policiamento do Governo do Distrito Federal para conter os responsáveis. Para analisar o ato e suas consequências, a UnBTV entrevistou Arthur Trindade, professor do Departamento de Sociologia da UnB, ex-secretário de segurança do DF e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

UnBTV: No domingo (8) mesmo, o presidente Lula decretou a intervenção federal na segurança pública do DF, e o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o afastamento do governador do DF, Ibaneis Rocha, por 90 dias, e a prisão de Anderson Torres, então secretário de Segurança Pública do DF e ex-ministro de Jair Bolsonaro, e também do comandante da PMDF, Fábio Augusto. Como o senhor avalia as medidas tomadas? Elas foram suficientes para conter os atos golpistas não só em Brasília, mas também em outras unidades da federação?

Arthur Trindade: As medidas foram adequadas. O governo federal e o STF reagiram de maneira rápida e enérgica. Foi fundamental isso pra evitar outros riscos e para assumir o controle da situação. Lembrando que no domingo, não se tinha certeza se as forças de segurança do DF conseguiriam conter a situação dado tudo o que aconteceu. Então, a resposta para aquele momento foi bastante adequada, enérgica e rápida. Se ela serve para conter situações futuras, acho que não. É preciso muito mais. É preciso não só prender os manifestantes que entraram, quebraram tudo. É claro que precisam ser punidos e responsabilizados, a perda patrimonial foi enorme, mas, sobretudo, a dimensão simbólica, uma mancha na nossa democracia. Mas eu lembro que esse não foi o único episódio de atentado à democracia.

Nós tivemos dia 12, data de diplomação do presidente eleito e do vice-presidente eleito, Lula e Alckmin, pelo TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. Nesse dia 12, nós tivemos quebra-quebra, manifestações, depredações, colocou-se fogo em ônibus no Setor Hoteleiro Norte. Ali já foi um primeiro evento que mostrou que esses manifestantes estavam dispostos a atos de violência. Mais grave, no dia 24, véspera do Natal, houve uma tentativa de atentado à bomba nas imediações do aeroporto de Brasília. Uma bomba com dinamite foi colocada em um caminhão-tanque, carregado com 63 mil litros de querosene. Por sorte, o artefato não explodiu. No mesmo dia, a polícia do DF achou uma mochila com 40 kg de explosivos numa região próxima ao Gama. Portanto, bastante razoável pensar que esses atentados não irão parar por aqui.

As autoridades precisam tomar medidas enérgicas também. Prisão dos mandantes, dos financiadores e desarticulação dessas redes que buscam atentados violentos. Obviamente não são todos os manifestantes e partidários do governo do ex-presidente que estão envolvidos, mas existem redes articuladas pensando isso, existem pessoas financiando essas redes, existem pessoas articulando o funcionamento dessas redes. As forças de segurança, especialmente agências de inteligência, Abin [Agência Brasileira de Inteligência], Polícia Federal, inteligência das Forças Armadas e das áreas de segurança pública de todos os estados, precisam correr para desarticular essas células terroristas. Do contrário, a gente pode assistir novos eventos com sabotagens, como a gente assistiu ontem – três torres de transmissão de energia foram derrubadas –, podemos ter outras manifestações violentas e invasões de prédios públicos e coisas gravíssimas, como novas bombas e até mesmo atentados à vida de autoridades públicas.

UnBTV: Sobre o domingo, o que a gente viu foi algo inédito na história do Brasil: esse ataque aos três poderes simultaneamente. O senhor já foi secretário de Segurança aqui no DF e, na época, deixou o cargo por discordar da atuação da Policia Militar contra professores que se manifestavam. E agora a gente viu uma atuação bem diferente. Como o senhor analisa esses dois momentos, essas duas atuações da PM: uns com uma repressão mais forte e outros quase que indicando o caminho para que acessassem os edifícios?

Arthur Trindade: Chega a ser irônico. Se a gente compara o nível de força empregado pelas forças de segurança pública quando temos manifestações de professores, estudantes, médicos e movimentos sociais, com o que a gente viu no domingo (8), culminação da polícia, enfim. Guardado esse nível de violência, ali me parece que foi muito diferente. Não foi só um erro na atuação. Não foi só uma tolerância por parte dos policiais que estavam no terreno. Nós tínhamos policiais no terreno e as imagens mostram que alguns policiais se afastaram para tomar água de coco, outros tiraram selfies, conversaram com manifestantes, isso é um problema de fato. Mas o maior problema foi que o planejamento foi negligente e criminosamente omisso porque não previu forças de segurança de reforço, tropa de choque, cavalaria, forças armadas etc, de forma que aqueles policiais que lá estavam, que confraternizaram com os manifestantes, é pouco provável que pudessem conter aquela multidão.

UnBTV: Na verdade, o planejamento foi modificado às vésperas, houve isso também.

Arthur Trindade: Exatamente, e isso está sendo apurado. Provavelmente, isso o que acabou motivando a decisão do ministro Alexandre de Moraes. Não foi o planejamento mal feito, houve um planejamento e ele foi mudado em cima da hora. Essa manifestação de domingo não foi atípica, foi normal para a segurança pública do DF. É normal acontecer manifestações desse porte e com esse grau de conflito, de risco e de violência. Não é a primeira vez. Posto isso, as forças de segurança pública do DF têm protocolos e planejamento muito bem estabelecidos para lidar com essas situações. Eles bloqueiam ruas, fazem uma avaliação do número de pessoas – para isso que serve o serviço de inteligência –, fazem uma avaliação do risco que isso implica e fazem o planejamento. O que chama a atenção não foi o tamanho da manifestação, não foi a agressividade dos manifestantes golpistas, mas a mudança de planejamento. Por que será que o ex-ministro e ex-secretário de Segurança Pública decidiu mudar o planejamento? Por que ele decidiu exonerar exatamente às vésperas de uma manifestação desse porte todo o grupo de coordenação e articulação dessa operação de controle de manifestações? Por que o governador Ibaneis acatou a sugestão de mudar esse planejamento e liberar o acesso à esplanada aos manifestantes mesmo tendo sido informado pelos órgãos de inteligência dos riscos implicados?

UnBTV: Alguns analistas apontam que a Polícia Militar e as Forças Armadas foram cooptadas nos últimos anos pelo movimento bolsonarista, o que acaba sendo um desafio para os governos estaduais e para a Presidência da República. O senhor concorda com essa avaliação? Esse é o caso da PMDF? A gente pode dizer que ela foi cooptada pelo bolsonarismo?

Arthur Trindade: Eu concordo com a avaliação. A gente tem várias pesquisas mostrando a radicalização de grupos de policiais. Entre policiais, o apoio a Jair Bolsonaro sempre foi muito acima da média nacional, o que não quer dizer nada. Policiais, médicos e professores votam em quem quiserem. Por vários motivos que a gente poderia discutir – cientistas políticos têm muito mais a dizer sobre isso –, os policiais apoiam, há uma grande adesão ao bolsonarismo nas fileiras das polícias, mas isso é parte da história. Não necessariamente essa adesão se traduz em omissão, negligência e inação.

Por exemplo, nas manifestações dos anos anteriores no 7 de setembro, a polícia atuou muito bem. Eu lembro que no 7 de setembro de 2022, quando Jair Bolsonaro convocou seus apoiadores no Rio de Janeiro e em Brasília, aqui a polícia foi muito firme, impedindo a entrada de caminhoneiros na Esplanada. Então, veja, é a mesma polícia que agiu muito bem no 7 de setembro e no dia da posse [do presidente Lula]. A operação no dia da posse foi um sucesso, a posse foi uma festa da democracia sem incidentes, muito bem controlada, as pessoas puderam ir com segurança se manifestar, o presidente desfilou de carro aberto, deu tudo certo. Como também a segurança funcionou muito bem no 7 de setembro, onde houve uma situação limite, houve uma tensão, o governo federal pressionou as forças de segurança do DF a liberar a entrada de caminhoneiros e permitir outros tipos de manifestação, e as forças de segurança do DF e o governador Ibaneis não permitiram.

É essa mesma polícia, com esse mesmo planejamento, que agora tem esse desempenho que eu tenho chamado de vergonhoso. Então, não é a cooptação dos policiais, o grau de adesão desses policiais ao bolsonarismo, claro, isso tem um pano de fundo. Isso tem muito mais a ver, muito mais relação com o planejamento, com as ordens das autoridades competentes, sua ação, inação e suas escolhas. Tem menos a ver com os policiais que estavam lá no terreno. Fizeram bem no passado os mesmos policiais.

UnBTV: E as comparações com a invasão do Capitólio nos Estados Unidos, há dois anos, foram inevitáveis. Tanto a imprensa nacional quanto a internacional chamaram a atenção. Quais as semelhanças e diferenças desses dois ataques à democracia tanto nos EUA quanto no Brasil?

Arthur Trindade: A inspiração é óbvia. O presidente Jair Bolsonaro ainda em exercício disse que aquilo poderia acontecer e ia acontecer no Brasil. Então, é óbvio que houve uma inspiração, mas história só se repete na forma de farsa, como disse Karl Marx. Há algumas diferenças. No caso estadunidense, a invasão aconteceu no Capitólio, no prédio do Congresso americano, não invadiram a Suprema Corte e muito menos a Casa Branca, que ficam todas próximas. Segunda diferença e mais importante, nos EUA, aquela invasão aconteceu ainda com Donald Trump no poder exercendo a presidência e, portanto, sendo comandante em chefe das Forças Armadas e responsável direto por acionar ou não as tropas federais para conter a multidão.

No Brasil, isso acontece com Jair Bolsonaro tendo deixado o poder há uma semana, faz toda a diferença, é uma diferença enorme. O que implica também, que a gente vai saber no futuro e muitos analistas se deparam com isso agora, as consequências disso tanto para o bolsonarismo e a capacidade de Jair Bolsonaro e seu grupo político continuarem exercendo o controle e a liderança desse grupo radicalizado, muitas análises sendo feitas e também quais serão os reflexos disso no atual governo, quais serão os impactos disso no governo do terceiro mandato de Lula.

UnBTV: A gente também pode falar de uma diferença entre as Forças Armadas nos EUA e no Brasil? Qual é o papel das Forças Armadas brasileiras nesse contexto de ataques à democracia?

Arthur Trindade: Esse é um tema bastante complexo e que requer um debate longo, mas pensando em termos rápidos, há enormes diferenças. Eu diria que se a gente pegar o exemplo do general Mueller, norte-americano, chefe do Estado maior conjunto das Forças Armadas, a maior autoridade militar norte-americana, Mueller, no auge das tensões políticas nos EUA, foi convidado a participar, pelo presidente Trump, de cerimônia religiosa que acabou se tornando um ato político a favor de Trump. Mueller compareceu ao ato e depois foi à imprensa se retratar, dizendo que não cabe ao chefe das Forças Armadas participar de atos políticos. Isso fez uma diferença enorme. No Brasil, Jair Bolsonaro tem apoio de vários militares da reserva que trabalham no seu governo, mas vai aos quarteis, vai a cerimônias militares e aproveita para fazer discursos políticos. Ele vai na formatura dos cadetes da AMAN e faz um discurso político, vai na formatura na Aeronáutica e faz um discurso político-partidário eleitoral. Não cabe a um chefe das Forças Armadas, numa cerimônia militar, numa formatura, fazer um discurso político-partidário, “votem em mim, o outro candidato é isso...”. Então essa é uma primeira diferença.

Por trás disso, tem um tema que cientistas políticos, sociólogos, analistas internacionais, internacionalistas e outros historiadores se debruçam. Ainda está presente entre os militares brasileiros e boa parte da nossa elite jurídica, mídia e outros, uma ideia de que os militares seriam um poder moderador. A ideia de poder moderador precisa ser entendida. A inspiração é o império, onde o imperador exercia o poder de moderar os conflitos entre Legislativo e Executivo, então ele dissolvia o gabinete numa crise política, ele estava acima dos poderes. Os militares têm ainda essa representação social do seu papel, isso ainda é forte, mas eu digo, não é forte apenas entre os militares, a gente vê jornalistas influentes, personalidades influentes do mundo jurídico e do meio empresarial ainda pensando nisso. O problema da ideia de poder moderador é que ela coloca as Forças Armadas acima dos outros poderes. No caso norte-americano, as Forças Armadas americanas se veem, e a maior parte da elite norte-americana política percebe as FA, como aparte da estrutura política, mas não acima, ela está do lado. Foi o que o general Mueller falou, ela está do lado. Aqui, os militares se autoatribuem uma posição acima e lideranças políticas, jurídicas aceitam essa ideia e reforçam essa ideia, faz uma diferença enorme.

UnBTV: Para finalizar nossa entrevista, apesar de estar fora do Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro tem sido lembrado e associado com o que vem acontecendo aqui no Brasil, esses ataques. Como ele pode ser responsabilizado? Já é possível fazer essas ligações?

Arthur Trindade: É um debate jurídico. Se existem elementos jurídicos que permitem esse tipo de conclusão, isso vai ser fruto de debates daqui para frente. Na minha opinião, os elementos já estão todos postos. Basta entrar na internet e buscar os vídeos de Jair Bolsonaro que isso vai acontecer, dizendo que a culpa é do TSE. Basta pegar os vídeos dos filhos de Jair Bolsonaro, dos ministros dele, dizendo que ele não vai cumprir as ordens do TSE, enfim. Na minha opinião é um caso que temos excesso de provas dessa relação de Bolsonaro com essas manifestações, mas obviamente vai ter um debate político sobre se Bolsonaro cometeu ou não o crime de responsabilidade. Na minha opinião, cometeu e está amplamente provado, basta buscar nas redes sociais.

 

Confira a entrevista em vídeo:

 

 

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