A paixão por animações é algo que o doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes da UnB Fernando Gutiérrez carrega desde criança. O hobby ficou sério em 1996, quando o entusiasta mergulhou no universo da computação gráfica. Desde então, a proximidade com o campo tornou-se cada vez maior: além de já ter dirigido seis curtas-metragens de animação – o primeiro deles, intitulado O Mascate, teve cerca de 520 mil visualizações no Youtube –, Gutiérrez passou a se dedicar a pesquisas na área.
Em seu doutorado, ele tem analisado filmes latino-americanos inscritos nas edições do Brasília Animation Festival (BAF), único evento do Distrito Federal voltado à temática e do qual é um dos organizadores. A ideia é avaliar a composição da cena animada, a partir de questões técnicas, como realização, produção, orçamento, equipe envolvida e temática, para compreender de que forma esses elementos e suas limitações implicam no que será visto pelo espectador na telona.
“A minha intenção é produzir uma episteme que vem daqui, ou seja, produzir um pensamento e um fazer que tenha a nossa cara, nossa digital”, afirma o pesquisador.
A partir das aproximações com o campo da atuação, pelo viés do teatro de formas animadas, a pesquisa, ainda em fase inicial, busca também ampliar as percepções sobre o corpo no universo da animação e investigar de que modo a maneira de entender o corpo pode influenciar no fazer fílmico. “Comecei a pensar essa relação pela percepção de que a minha experiência em atuação ajuda na minha prática em animação”, assinala.
Gutiérrez pretende, ainda, observar as aproximações identitárias entre as obras, além de visualizar as transformações no estilo das produções ao longo das edições do evento. Como resultado final da tese, mira a produção de um curta-metragem – último de uma trilogia do pesquisador voltada à temática do êxodo –, de modo a convergir reflexões sobre corpo e experiência em diversos locais percorridos para a realização do filme.
INCENTIVO – Muito além de fonte de suas pesquisas, o BAF é fruto do anseio do pesquisador em inserir o Distrito Federal no cenário de exibição e produção nacional de animações, além de fortalecer esse mercado no país. Vontade essa que Gutiérrez compartilha com o também organizador do festival e pesquisador da UnB Fernando Nisio.
“Essa era a oportunidade de oferecer ao pessoal de Brasília algo feito por Brasília. O público daqui é carente dessas coisas e os animadores também. Ainda não podemos dizer que exista um mercado de animação local”, comenta Nisio.
O festival chega à sua segunda edição com atividades entre os dias 12 e 15 de outubro, no auditório da Casa do Professor, sede da ADUnB, no campus Darcy Ribeiro. O público poderá conferir um pouco do que tem sido realizado internacionalmente e trocar experiências com quem já atua na área. O evento tem o apoio da UnB e do Fundo de Apoio à Cultura (FAC).
Sessenta e nove curtas-metragens de 24 países serão exibidos em oito mostras, voltadas para plateias infantil e adulta. Quatro dos selecionados são do Distrito Federal. Os melhores filmes de cada mostra serão premiados, segundo avaliação dos júris técnico e popular.
Feira, palestras, concurso de cosplay, mesas-redondas e oficinas com profissionais de renome na indústria de animação também integram a programação. Alê Abreu, diretor do filme O menino e o mundo, que disputou o Oscar de Melhor Animação em 2016, é um dos convidados das atividades.
Em entrevista à Secretaria de Comunicação da UnB, os organizadores do BAF falaram um pouco sobre a iniciativa e a conjuntura do mercado de animações no Brasil.
Como surgiu a ideia do festival?
Nisio – Somos movidos por uma paixão. Nosso intuito sempre foi o de promover a questão da animação. Brasília é muito escassa de espaços para isso. Era importante ter algo com a cara da cidade e que atendesse ao público local. A proposta, primeiramente, era a de fomentar a animação do Distrito Federal e construir um ambiente propício para o público e para o animador, onde houvesse espaço de diálogo sobre o que está acontecendo nacional e internacionalmente.
Quais foram os critérios para a escolha dos filmes que irão compor as mostras?
Gutiérrez – Privilegiamos filmes que tocam o espectador de alguma maneira, seja por uma exploração sensorial ou por uma história comovente. O que vai muito além da técnica. Não tivemos medo de escolher também filmes que não agradem a grande massa, porque é interessante que tenhamos um público vasto. Tentamos dosar os filmes que são meio lúdicos e aqueles que vão tirar o espectador da zona de conforto e fazê-lo pensar de alguma maneira.
Como se encontra o panorama da produção de animações nacionais e da região nos últimos anos?
Gutiérrez – De 15 anos para cá, tínhamos [no Brasil] um cenário de animação com uma demanda por animadores que era do mercado publicitário. E aqui em Brasília esse mercado era praticamente inexistente. As grandes produções publicitárias estavam concentradas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Desde então, começou-se a produzir mais animações e, com isso, a qualidade também foi aumentando. Esse mercado passou a se aquecer nacionalmente não pelo viés da publicidade, mas do cinema de curta-metragem e da produção de séries, por conta da Lei da TV Paga – os canais precisam dessas produções independentes nacionais. E aqui em Brasília também. Se o mercado publicitário daqui é difícil, o mercado para produzir séries para TV se torna algo mais concreto.
Como a realização do BAF pode contribuir para a inserção de Brasília no mercado nacional?
Nisio – Tem a questão de não só mostrar as pessoas de fora para cá, como também de mostrar as pessoas daqui para fora. É um jeito de incluir Brasília nesse eixo. Temos que mostrar que temos animadores e animações de boa qualidade. Brasília tem um comportamento peculiar: todo mundo se tranca nos estúdios e produz e a gente não fica sabendo.
Ainda há dificuldade de circulação das animações nacionais nos espaços de exibição?
Gutiérrez – Quando você pensa em curta-metragem, a forma de distribuição é por festivais, porque não existem canais que comprem curtas, eles preferem comprar séries – tem até uma questão de logística do trabalho que isso gera. Claro, tem o Canal de Curtas na TV paga, o Prêmio Aquisição, do Canal Brasil, que são formas de incentivar a produção de curtas e a exibição, mas o caminho é geralmente os festivais.
E com relação aos longas-metragens?
Nisio – Se formos falar sobre salas de exibição, ainda há uma grande dificuldade de o cinema brasileiro em geral chegar a esses espaços. Recentemente foi lançada uma animação brasileira, chamada Lino. É um filme bom, de qualidade. Mas mesmo assim, ainda teve certa barreira para chegar. Você pensa: temos animação brasileira que concorreu ao Oscar. Mas como tem sido encarada a animação? O BAF vem justamente para provar que é uma coisa séria e que temos que ter um espaço por uma questão de aglomeração e divulgação.
Gutiérrez – Com relação aos longas-metragens, existe uma questão cultural do brasileiro de preferir assistir outras produções. É difícil inserir um filme nacional [nas salas de exibição] de maneira que ele tenha repercussão. Com o próprio Lino, em momento algum na divulgação se fala que é um filme brasileiro, porque pode ser algo negativo. E é um filme que tem qualidade e compete com outras produções internacionais. Se observarmos a janela do circuito comercial, o que é exibido é a ponta de um iceberg. São raras as exceções de filmes brasileiros muito bons que entram nesse mercado.
Houve evolução na formação de profissionais para atuarem nesse mercado nos últimos anos?
Nisio – Nós temos uma defasagem do ensino em animação gigantesca, em relação ao que é produzido lá fora, em lugares como Estados Unidos e França. Eles estudam animação há 60 anos. Às vezes ouvimos muita comparação entre o mercado de animação brasileira e o do exterior. Mas é algo peculiar, não tem como fazer um vínculo. Muitos animadores daqui aprenderam persistindo, porque não tinham escolas. Hoje em dia temos algumas escolas no Brasil que oferecem esse ensino. Acredito que daqui a dez anos vamos começar a ter um aprendizado nacional, com uma cara mais nossa, e que evite buscar o que é ensinado pela Disney e pelos grandes estúdios – o que a gente faz hoje em dia. O intuito do BAF é mostrar que a gente é diferente e ensinar ao público a aceitar isso e saber a diferença entre nosso mercado e o internacional.