Quando Marly Araújo trabalhava na Coordenação de Hanseníase da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) não imaginava que, anos mais tarde, ela mesma seria mais um número entre as estatísticas com as quais lidava diariamente. A ironia do destino, como ela define, acabou levando-a além: sete anos após o aparecimento dos primeiros sintomas e três anos depois do diagnóstico, Marly criou, ao lado de outras pacientes, o Grupo de Apoio às Mulheres Atingidas pela Hanseníase (Gamah).
Hoje, o grupo já tem mais de 15 anos de atuação. Algumas atividades continuam acontecendo no local onde foi instituído: o Hospital Universitário de Brasília (HUB). Referência no tratamento da hanseníase, a unidade atende, por mês, cerca de 160 pacientes ligados à doença. São casos encaminhados por equipes e unidades de atenção básica, responsáveis pelo atendimento inicial. O primeiro contato entre paciente e profissional de saúde não acontece no HUB.
Com relatos milenares de ocorrências – ainda enquanto lepra –, a hanseníase é considerada uma doença negligenciada. Já esteve próxima da erradicação por volta dos anos 2000, mas, em muitos países, ainda é um problema sério. O Brasil é um deles, e só perde para a Índia em número de novos registros.
Segundo boletim epidemiológico publicado em 2017 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil registrou 25.218 novos casos em 2016 – 12% das ocorrências de todo o mundo: 214.783. A taxa nacional é considerada de alto índice endêmico. Os estados com maior incidência da doença são Mato Grosso, Maranhão e Tocantins.
Embora o Distrito Federal tenha recebido, em 2005, certificado de eliminação, 162 novos casos foram contabilizados na região em 2017. A informação consta no Relatório de Avaliação das Ações de Controle da Hanseníase da Subsecretaria de Vigilância à Saúde, vinculada à SES-DF.
Desde 1942, cada último domingo do mês de janeiro é lembrado como Dia Mundial de Luta Contra a Hanseníase. A data é chancelada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 2019, cairá no dia 27. Em 2016, no Brasil, o Ministério da Saúde atribuiu ao mês inteiro como tempo de conscientizar a população sobre a hanseníase: é o Janeiro Roxo, que busca difundir, sobretudo, a informação de que a doença tem cura.
ASPECTO MÉDICO – Causada pelo bacilo Micobacterium leprae, a hanseníase é uma doença infecciosa de difícil transmissão. “Não é qualquer contato, apenas aquele muito íntimo. É preciso desmitificar esse preconceito de que compartilhar assentos e conversar com a pessoa vai transmitir a doença”, esclarece Ciro Martins Gomes, médico do HUB e professor da Faculdade de Ciências de Saúde (FS) da UnB.
De característica dermatoneurológica, a hanseníase ataca a pele e os nervos. “A qualquer sinal de mancha dormente ou espaçamento dos nervos, deve-se procurar o médico. É preciso estar atento também a todo tratamento para doença de pele que não estiver surtindo efeito”, orienta o especialista.
Apesar da cura, a doença pode deixar sequelas se tratada de forma tardia. Em geral, o tratamento dura 12 meses e é fornecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Após 15 dias de medicação, já não há mais risco de transmissão, que depende também da carga genética do indivíduo.
No HUB, a avaliação dos pacientes com hanseníase é realizada por equipe multidisciplinar, envolvendo atualmente medicina, fisioterapia e enfermagem. “Estamos tentando conseguir um odontólogo também. Em função das possíveis sequelas, é muito importante esse acompanhamento integrado”, destaca Ciro Martins.
ASPECTO SOCIAL – Para a criadora do grupo de apoio, Marly Araújo, o principal problema está na falta de políticas públicas para o diagnóstico precoce. “O exame clínico é muito mais importante do que o laboratorial, porque não há um teste específico para a hanseníase. Atualmente, no DF, mais de 80% dos casos são identificados tardiamente”, aponta.
Desde que foi diagnosticada, ela adquiriu ainda mais conhecimento sobre a doença. Com a atuação no Gamah, passou a ser uma multiplicadora. Hoje Marly é voz ativa na representação do grupo junto ao Conselho dos Direitos da Mulher e ao Conselho de Saúde Distrital. “Nós participamos das reuniões de avaliação do programa de hanseníase, então vamos aprendendo."
Com a propriedade de quem conhece o espaço de atuação, ela critica a gestão pública da doença nos últimos anos. “Infelizmente, as coisas pioraram. Antes, em cada cidade satélite havia um médico, um enfermeiro e uma sala de hanseníase. Os agentes de saúde também orientavam quando viam uma mancha suspeita. Isso acabou. Eu sou a favor de ir para a atenção primária, mas é preciso primeiro capacitar profissionais de saúde”, indica.
O médico Ciro Martins concorda com a necessidade de capacitação. “Como toda patologia que ainda não está controlada, devem ser feitos mais esforços para o controle e identificação, capacitação de profissionais e abrangência maior dessas ações, que trarão resultado a médio e longo prazo”, observa.
Ainda em janeiro, o HUB, em parceria com o Gamah, irá oferecer capacitação específica sobre a hanseníase a profissionais das equipes de Saúde da Família que atuam na Região de Saúde Leste, que compreende as áreas de Itapoã, São Sebastião e Paranoá.
DESPREPARO, PRECONCEITO E ESPERANÇA – Em 2014, após quatro anos em busca do que a acometia, Maria Lúcia Damasceno recebeu o diagnóstico da doença. “A sua vida vai por água abaixo. Primeiro, você perde a dignidade e tem que lidar com o preconceito”, lamenta. A situação de Maria Lúcia poderia ter sido menos dolorosa se tivesse sido diagnosticada corretamente quando apareceram os primeiros sintomas.
“Eu tinha inchaço em um dos pés e fui a vários médicos, que sempre diziam que era alergia. Botaram umas plaquinhas nas minhas costas e deu alergia ao níquel. Alguma coisa tinha que dar, né?”, ironiza.
O médico Ciro Martins Gomes admite que não é rara a confusão na hora de fechar o diagnóstico. Sintomas da hanseníase muitas vezes são encarados como resultado de lesão por esforço repetitivo ou de alterações osteomoleculares, por exemplo. Mesmo assim, o professor da UnB afirma que o diagnóstico precoce pode ser feito por diversas especialidades médicas.
Raimundo José de Lima Filho está no oitavo mês de tratamento. Apesar do choque inicial, tem enfrentado o problema com sentimento de esperança. “Não foi bom nem para mim, nem para minha família, mas a gente tem que acostumar com tudo, né? O que me resta agora é tratar."
Com manchas nas pernas e febre no local, ele também passou por diversos médicos até descobrir o que tinha. “Usava remédio, pomada e às vezes as manchas sumiam, mas depois voltavam”, diz. Agora ele lida com os efeitos da medicação. “Tive pressão alta e outros problemas de saúde apareceram, mas está dando tudo certo”, confia.
SOBRE O GAMAH – O Grupo de Apoio às Mulheres Atingidas pela Hanseníase (Gamah) foi formado em 2003, quando um grupo de cinco mulheres, entre pacientes e familiares, estava reunido no HUB e decidiu buscar outra fonte de renda, uma vez que muitas tinham limitações causadas pela doença. Então, elas decidiram bordar panos de prato enquanto aguardavam o atendimento.
“Com o tempo, médicas e enfermeiras começaram a se interessar e passamos a vender esses produtos”, relata Marly. Atualmente, já são 15 voluntários e cerca de 50 famílias assistidas. O nome foi mantido, mas diversos homens também participam.
A sede está em Planaltina, onde o grupo oferece cursos de artesanato e vende todo o material produzido em uma banca. Os ganhos são revertidos para os associados. “Como não recebemos ajuda governamental, contamos com seis sócios doadores que contribuem para a manutenção de nossas atividades."
Além da assistência material, uma das principais atividades do grupo é a participação política. “As pessoas começaram a perceber a importância dessa atuação quando os serviços públicos de hanseníase pioraram”, avalia.
O médico Ciro Martins reconhece a relevância social, política e pedagógica do Gamah. “Graças ao movimento, várias demandas foram atendidas. Apesar das dificuldades, isso mostra que o Hospital Universitário teve um olhar diferenciado para a hanseníase."