A representativade das tranças para a população negra vai além do apelo estético. Os cabelos trançados são carregados de significados que remetem à memória e à identidade brasileiras. Por aprofundar o entendimento acerca das responsáveis por essa expressão cultural, o projeto Tranças no Mapa foi anunciado em dezembro como uma das ações vencedoras do 37º Prêmio Rodrigo Melo de Andrade, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O Tranças no Mapa é a base da dissertação em desenvolvimento por Layla Maryzandra no Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (Mespt/CDS).
“Construímos a primeira cartografia sociocultural do Distrito Federal [DF] e Entorno, mapeando trancistas negras e realizando um diagnóstico territorial e o perfil sociocultural, destacando suas histórias e contribuições para a cidade por meio de inventário participativo”, explica Maryzandra. “A iniciativa promove discussões sobre identidade, território e direito à memória, além de realizar incidência política estendendo diálogo com o Estado e realizando ações de educação patrimonial local e nacional.”
O Tranças no Mapa deriva de um trabalho ampliado em atividade há 12 anos, o Fios da Ancestralidade, também idealizado pela pesquisadora. O Fios promove oficinas, pesquisas e ações de formação em comunidades e escolas do DF e do Entorno. Em meio à pandemia de covid-19, a iniciativa estendeu-se por meio digital, possibilitando o uso da geotecnologia para o mapeamento de profissionais trancistas.
“O interesse em me aprofundar nesse tema surgiu de uma conexão profunda com minha história pessoal. Comecei a trançar profissionalmente aos 17 anos, sendo a primeira da minha família a exercer esse ofício como uma fonte de renda”, afirma Maryzandra. Ela conta que, durante as pesquisas, descobriu que a família materna é originária da comunidade quilombola Damásio, na Baixada Ocidental Maranhense. “Essa descoberta me levou a investigar e compreender que eu fazia parte de uma linhagem de trançadeiras em minha família, cujas raízes remontam aos modos de vida quilombolas.”
Para os trabalhos de genealogia, a pesquisadora ressalta a contribuição do historiador Elson Matias. As investigações sobre a realidade familiar fizeram com que Layla Maryzandra pudesse perceber que a vivência dela “se entrelaça com uma história coletiva, normalmente fragmentada pela falta de registros sobre famílias negras”. Ao entender melhor o passado da bisavó, Pureza, da avó, Raimunda, e, principalmente, da mãe, Maria de Nazaré, ela constatou que muitas histórias de trancistas são semelhantes à dela.
Esse entendimento impulsionou a parte da pesquisa que envolve as metodologias de cartografia social, mapeamento afetivo e participativo. Para isso, Maryzandra fez uso da plataforma de georreferenciamento Ushaidi. Desenvolvida por uma queniana, a ferramenta permite agregar e mapear dados informados pelas participantes da pesquisa, que é parcialmente financiada pelo Fundo de Apoio a Cultura do DF (FAC).
“A relevância das pesquisas desenvolvidas para as políticas públicas de valorização da cultura e da população negra é fundamental, pois elas oferecem subsídios importantes para a criação de ações que promovam a inclusão, o reconhecimento e a preservação das tradições, histórias e identidades negras”, avalia a pesquisadora. “A pesquisa preenche uma lacuna histórica e importante: a ausência de dados e indicadores sociais específicos sobre o ofício de trançar, principalmente sob as perspectivas de raça, gênero e território.”
RECONHECIMENTO E PRÓXIMOS PASSOS – O prêmio do Iphan teve como tema a Visibilidade de Gênero na Economia do Patrimônio e reconheceu outras 17 ações. Cada uma delas recebeu R$ 30 mil. O Tranças no Mapa foi distinguido como ação de pesquisa e formação com metodologias bem-estruturadas, com o potencial de “de subsidiar a proposição de políticas públicas de profissionalização e patrimonialização voltadas para esse ofício tradicional”.
“A pesquisa da Layla representa uma possibilidade muito inovadora de avançar nas investigações que se referem a trajetórias de famílias negras”, avalia a orientadora da pesquisa, Cristiane Portela (HIS/ICH). Ela classifica como “uma alegria enorme” o desenvolvimento das pesquisas no mestrado e entende que os estudos contribuem para entender relações de territorialidade e marcas das comunidades tradicionais. “O trabalho da Layla deixa contribuições tanto do ponto de vista metodológico quanto teórico e epistêmico”, afirma.
Portela destaca a presença no trabalho das dimensões da visibilidade a acervos familiares de pessoas negras e da leitura da história do DF na perspectiva das trancistas. Ela diz-se grata por orientar a pesquisa e elogia a competência, o talento e o comprometimento de Layla Maryzandra. “Esse tipo de saber orgânico, construído no Mespt e representado no trabalho da Layla, indica que o caminho para a produção do conhecimento são esses diálogos mútuos e efetivos”, analisa a professora ao comentar as possibilidades de interação oferecidas no mestrado.
Os achados da pesquisa tendem a impulsionar outros estudos. “Mesmo depois da defesa da dissertação em 2025, continuo a pesquisa. Primeiro difundindo todo o material produzido a partir dela, que são fotografias etnográficas e os mapas temáticos”, explica Maryzandra. Parte desses elementos foi apresentada em novembro em exposição no Festival da Consciência Negra 2024, na Torre de TV, em Brasília. Para o ano que vem, a mestranda prevê novidades como os lançamentos de site, de material audiovisual e de mapa artístico confeccionado em tecido.