Violência doméstica e sexual, assédio, feminicídio, falta de oportunidades profissionais em áreas tidas como tipicamente masculinas, dificuldade de ascensão em diferentes carreiras, desigualdade na divisão de trabalhos domésticos, invisibilidade do cuidado rotineiro da família, entraves para ocupar espaço na política. São muitas e complexas as situações cotidianas experimentadas por mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Na contramão destas problemáticas históricas, os feminismos surgem como movimentos que têm articulado estratégias de enfrentamento às desigualdades de gênero e outras opressões que atravessam a vida deste grupo.
Demonstrar como estas mobilizações são transformadoras para a sociedade como um todo é proposta da 30ª edição da revista Darcy, produzida pela Secretaria de Comunicação da UnB (Secom). Feminismos para quê? questiona a publicação de jornalismo cientifico e cultural lançada na última sexta-feira (8), no anfiteatro 9 do Instituto Central de Ciências (ICC), campus Darcy Ribeiro. A Darcy 30 está disponível em versão impressa e on-line.
Assim como a revista convida leitoras e leitores a refletir sobre o impacto das desigualdades de gênero e dos feminismos no cotidiano, o evento também demarcou espaço de debate sobre o tema em roda de conversa com entrevistadas do novo número.
FEMINISMOS PARA TODO MUNDO – O Dossiê da Darcy destaca, entre iniciativas da UnB pela equidade de gênero, a constituição do primeiro Instituto de Estudos Avançados no Brasil abertamente feminista e coordenado por mulheres, o INCT Caleidoscópio. Trata-se de uma rede nacional de desenvolvimento científico que atua no enfrentamento às desigualdades e violências de gênero, além de fortalecer a inovação e divulgação científica neste campo.
Ana Gaspar, estudante de Letras – Tradução Francês e bolsista na iniciativa, compartilhou sua experiência de participação em um projeto de cine debate promovido pelo INCT junto a estudantes de ensino médio do campus São Sebastião do Instituto Federal de Brasília (IFB). Feminismo, racismo e acesso à universidade pública foram assuntos discutidos com os alunos por meio da exibição de filmes.
Ana constatou que a iniciativa contribuiu para que eles pudessem ver o futuro na Universidade, já que era fato distante da realidade da maioria, e conhecer as políticas de assistência estudantil. Sobre as temáticas de feminismo e raça, ela comentou que ficou fascinada com a consciência de gênero dos estudantes, sobretudo dos meninos, e que os alunos se sentiram mais respaldados em situações de antirracismo.
“Fiquei muito surpresa quando a gente trabalhou feminismos com eles. Os meninos tiveram uma participação muito grande. Na minha época de ensino médio, eles não se preocupavam com as causas feministas do jeito que eu vi aqueles meninos se preocupando”, disse a bolsista, que percebeu o engajamento dos alunos no enfrentamento a violências sofridas pelas meninas.
Pesquisadora do avanço do antifeminismo na política brasileira, a doutoranda em Sociologia na UnB e militante do coletivo Juntas! DF, Camila Galetti, contribuiu para a elaboração do glossário feminista disponível no Dossiê da Darcy. Ela defendeu a importância de abordar o tema de forma pedagógica para romper com preconceitos.
“É de extrema relevância no sentido de trazer esse conteúdo de forma didática, consistente, com muita pesquisa, porque a gente precisa desmistificar essa ideia de que o feminismo é algo ruim, é mimimi, é desnecessário.”
Camila avalia que o avanço do conservadorismo na América Latina e em todo o mundo tem repercutido na deslegitimação da agenda feminista dentro da política. Esse fenômeno, segundo a doutoranda, seria reflexo do ressentimento por parte de homens e de outros grupos sociais da perda do lugar de privilégio, já que as mulheres têm ocupado cada vez mais espaços historicamente tidos como masculinos.
“O feminismo é uma prática de ressonância de tantas lutas. Ele se apresenta em tantas camadas, não tão somente numa disciplina que vai estudar especificamente gênero e teorias feministas, mas perpassa tudo. Quando a gente fala de sociedade, as mulheres estão em todos os espaços, muitas vezes de forma completamente precarizada, objetificada”, pontuou a pesquisadora.
“Então, os feminismos estão aí para que a gente possa dar nome às violências, aos incômodos, a subjetividades que às vezes são tão difíceis de vislumbrar como violência, e atrelar essas violências com questões de gênero”, completou.
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL – Disputar espaços para mulheres num campo científico com predominância de homens é missão a que tem se dedicado a professora do Departamento de Matemática da UnB e presidenta da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), Jaqueline Mesquita. A docente relatou que muitas meninas, tal qual ocorreu com ela, sentem-se deslocadas ao cursar a graduação em Matemática pela falta de representatividade feminina na área, tanto entre estudantes quanto entre docentes, e pensam em desistir.
Jaqueline enfatizou que é necessário estímulo desde a infância para que meninas desenvolvam habilidades matemáticas e para que não haja a perda de futuros talentos. “A gente tem percebido que as meninas, já na base, vão se desestimulando com a Matemática. Muitas acham que a área não é para elas, elas acham que é mais para meninos.”
A docente tem atuado em iniciativas para aumentar a presença das mulheres na Matemática e para combater violências de gênero na academia. Na UnB, um projeto de extensão promoveu, este ano, treinamento de alunas de escolas públicas para participação no torneio Meninas na Matemática, competição nacional exclusiva para este público.
Já na SBM, além da criação de um prêmio nacional para mulheres na área, em reconhecimento às suas pesquisas científicas, houve a instituição de uma Comissão de Conduta e Ética para pensar estratégias de enfrentamento a assédios contra estudantes e professoras.
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Num campo pedagógico, a professora do Instituto de Psicologia e autora do livro A prateleira do amor, Valeska Zanello, desenvolveu em 2022, numa parceria com o grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o baralho Emancipação: jogando contra o machismo. Trata-se de um jogo educativo para letramento de gênero de adolescentes e jovens.
“A gente criou esse baralho baseado no livro que eu escrevi no meu pós-doutorado, no qual proponho categorias analíticas para entender os processos de subjetivação no Brasil a partir do gênero. Existe todo um conhecimento científico por trás das cartas, mas com situações do cotidiano escolar”, comentou.
Validado em cinco instituições do ensino básico, o baralho, agora, será distribuído para todas as escolas públicas e instituições de medidas socioeducativas no Distrito Federal, a partir de parceria com o projeto Maria da Penha vai à Escola, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e parceiros.
Valeska também anunciou, em primeira mão, a proposta de lançamento, em 2024, do curso de extensão Maria da Penha vai à Universidade, para tratar de questões como assédio sexual e de gênero na academia. A ideia é que a formação seja inicialmente ofertada para gestores, com perspectivas de ampliação futura para docentes e, potencialmente, a estudantes das licenciaturas.
“Letramento de gênero e letramento racial pode ser uma função da universidade na preparação de futuros profissionais. O problema das violências de gênero e racial não é só da justiça, é também da educação. A gente pode encampar esse objetivo e ter muito a acrescentar para a sociedade”, vislumbrou.
CIÊNCIA JUNTO À SOCIEDADE – Durante o evento, que também marcou os 15 anos da Secom, a secretária de Comunicação, Mônica Nogueira, lembrou o papel de destaque da Darcy na produção de conteúdos sobre a ciência feita na UnB em linguagem acessível e com projeto visual atrativo especialmente ao público jovem.
Sobre a edição 30 da publicação, ela ressaltou a relevância do assunto na atualidade e relacionou à campanha institucional de 2023 Futuro é Agora. “O dossiê é dedicado ao tempo histórico em que vivemos, que é o tempo em que as mulheres lutam pela reversão das desigualdades, da violência contra elas, de diferentes formas, em diferentes espaços, com diferentes abordagens.”
Márcia Abrahão, reitora da UnB, parabenizou a equipe da Secom, o Conselho Editorial da revista e os cientistas que colaboraram para a concretização deste número. A gestora mencionou a maturidade alcançada pela publicação ao longo de suas 30 edições, o que também se reverbera na inclusão da revista como obra de referência no Programa de Avaliação Seriada (PAS) da UnB.
Em 2023, a prova de redação da etapa 2 do PAS teve como conteúdo de suporte matéria da edição 21 da Darcy, cujo dossiê é sobre o Cerrado. “Vocês veem como a revista está indo muito além da nossa Universidade. E é isso que a gente espera mesmo. Num momento de tanta desinformação, a UnB tem feito o trabalho de levar informação de qualidade à sociedade”, celebrou a reitora.
Este alcance junto à comunidade também tem se ampliado por meio da extensão universitária. A editora-chefe da Darcy e jornalista da Secom, Vanessa Vieira, expôs que, por meio de dois projetos, a revista tem se aproximado da comunidade escolar do DF e fortalecido a formação de estudantes de graduação, sobretudo da Faculdade de Comunicação (FAC/UnB), a partir do envolvimento na elaboração de produtos multimídia.
“Somente este ano a gente trouxe quase 300 estudantes do CED 104 ao campus Darcy Ribeiro. A maioria deles nunca tinha vindo à UnB, nem ouvido falar da realidade da Universidade. Por meio da revista Darcy, a gente conversa sobre conteúdos de ciência e os leva para visitas científicas no Museu de Geociências, na Experimentoteca de Física, entre outros espaços. Eles visitaram também a Universidade durante a Semana Universitária, conhecendo a Mostra de Cursos”, destacou acerca de parceria firmada entre Darcy e o Centro Educacional (CED) 104 do Recanto das Emas.
NO RITMO DO HIP HOP – Atrações culturais também completaram a programação de lançamento da Darcy 30, na sexta (8). Primeiro grupo de breaking exclusivo de mulheres no DF, o BSB Girls embalou a plateia com suas performances dançantes ao som do hip hop. Em 2023, o ritmo musical completou 50 anos, celebrados em reportagem da Darcy, com direito à playlist com 20 sucessos do rap no DF.
O som dos beats também ecoou pelo Restaurante Universitário (RU) com a DJ e produtora cultural Paula Torelly. A discotecagem marcou a abertura da exposição visual desta edição da revista, que pode ser visitada gratuitamente no saguão do RU até dia 15 de dezembro. Também no local, a estudante do primeiro ano do ensino médio no CED 104 Yasmin Moreno fez uma apresentação de poesia de sua autoria ao público.
E TEM MUITO MAIS – Outros assuntos de impacto estampam as páginas da edição 30 da Darcy. A publicação dá visibilidade a pesquisas pioneiras da UnB que estudam desde poluentes nos rios até a vida, do Ártico até fora do planeta. Iniciativas que pensam a inclusão na educação de forma lúdica também estão em destaque, assim como o machismo na língua portuguesa.
"Literalmente, vamos do espaço aos extremos do planeta, falando um pouquinho de cada área do conhecimento. Tem uma matéria muito interessante sobre a identificação de fungos em veículos espaciais que participam das missões da Nasa em Marte. A gente conversou, inclusive, com um cientista sênior da agência espacial estadunidense, que nos contou sobre um programa de proteção intergaláctica", anuncia Gisele Pimenta, jornalista da Secom e também editora-chefe da Darcy.
"Além disso, detalhamos como foi a primeira expedição científica oficial do Brasil ao Polo Norte e, na área da tecnologia, contamos sobre um projeto inovador que desenvolve sensores para identificar microplásticos e pesticidas nas águas do Distrito Federal. Para terminar, vale a pena olhar as belas imagens que publicamos dos peixes de água doce e, com elas, refletirmos sobre a importância desses animais para a preservação dos ecossistemas", convida à leitura.