Aumento na quantidade de casos prováveis e das notificações graves, maior incidência em crianças e idosos, expansão da mortalidade para todas as regiões do país. Esse é o balanço da pior crise de dengue da história brasileira, de acordo artigo publicado, em setembro, pela Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
De janeiro de 2020 a junho de 2024, foram mais de 11 milhões de casos prováveis de dengue no Brasil, número cinco vezes maior do que o registrado nos anos de 2000 a 2004, e quase o dobro quando comparado ao intervalo de 2010 a 2014. Em relação à quantidade de mortes causadas pela doença, no mesmo recorte temporal, foram quatro vezes mais óbitos do primeiro para o último período.
O artigo, que analisa registros epidemiológicos dos últimos 25 anos no Brasil, tem como um dos seus autores o professor Rodrigo Gurgel Gonçalves, coordenador do Laboratório de Parasitologia Médica e Biologia de Vetores Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília.
“Mesmo sem os dados completos de 2024 podemos afirmar que é a maior epidemia de dengue da história do Brasil, com mais de seis milhões de casos, um número dramaticamente superior a qualquer outro ano de análise epidemiológica. Um pico sem precedente”, afirma o pesquisador.
Ele lembra que, em 2024, outras características da epidemia chamaram atenção. A quantidade de casos de dengue grave (também conhecida como dengue hemorrágica, muitas vezes fatal) foi cinco vezes superior em relação ao mesmo período de 2023.
Outra diferença foi a maior incidência da dengue em idosos, principalmente acima de 80 anos. E, por fim, ficou clara a expansão geográfica da mortalidade, que acabou atingindo também as regiões sul e nordeste do país.
“Se compararmos, por exemplo, com o mapa geográfico dos anos 2000, eram poucos municípios que apresentavam alta taxa de mortalidade e esse número foi crescendo em 2010, 2020 e em 2024. Vemos claramente que dengue começou a ocorrer nos municípios até menos populosos do Brasil, mais distantes dos centros urbanos, de forma que nenhum lugar praticamente está livre da transmissão”, analisa Rodrigo Gurgel.
CAUSAS – Os autores do artigo indicam vários fatores como responsáveis pelo crescimento exponencial da doença no Brasil. Alguns deles são mudanças climáticas, com o aumento de temperaturas e de chuvas, falta de saneamento básico, escassez de agentes de saúde, pouca eficácia em intervenções do governo para controlar o vetor Aedes aegypti, resistência do mosquito a inseticidas e a presença de quatro sorotipos em circulação simultaneamente.
“Aumento de temperatura, aumento de chuva, isso tudo favorece o ciclo de vida do mosquito. Quanto mais quente, mais rápido o ciclo, quanto mais chuva, mais ambiente para ter larva dos mosquitos”, reforça o professor da UnB.
Rodrigo Gurgel explica que o saneamento básico inadequado, como se pode ver hoje na comunidade de Santa Luzia, na Cidade Estrutural, ou na região administrativa do Sol Nascente, ambas no Distrito Federal, favorece a proliferação do Aedes aegypti. Além disso, há a dificuldade da população em eliminar criadouros em suas casas, e o número de agentes de saúde é insuficiente para fazer prevenção e controle da doença.
“De qualquer forma, o governo tem suas responsabilidades de fazer o controle do Aedes aegypti. O problema é que hoje isso pode ser feito de forma tradicional ou explorando alternativas e novas tecnologias que já existem. Nós, da academia, publicamos [artigos] e mostramos como funciona, mas falta esse passo a mais que é incorporar essas tecnologias no serviço. Há uma certa dificuldade do serviço de incorporar essas novas tecnologias, por mais apoio que nós demos”, lamenta.
AVANÇOS – De acordo com o professor da Universidade de Brasília, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta quais são as novas tecnologias recomendadas para controlar o mosquito Aedes aegypti, baseada em evidências científicas.
“O método [EDL] é interessante porque os agentes de saúde locais já visitam as casas, então podem levar esses potes, essas estações disseminadoras, para os locais e deixar lá. Colocar água [no pote] acaba atraindo os mosquitos e eles disseminam o larvicida para todos os locais. Quem melhor do que o mosquito para encontrar um criadouro? É uma estratégia interessante que eu até chamei de cavalo de troia”, detalha Rodrigo Gurgel.
>> Leia: Aedes aegypti é o novo cavalo de troia
Novas tecnologias para o controle do Aedes aegypti 1) Borrifação residual intradomiciliar – o agente de saúde borrifa inseticida nas paredes internas das casas 2) Irradiação de mosquitos machos para que fiquem estéreis e não reproduzam a espécie 3) Estratificação de risco – mapeamento de municípios para mostrar em que áreas há maior quantidade de casos e onde que há maior frequência de mosquitos, para otimizar a instalação de medidas de controle 4) Soltura de Aedes aegypti infectados com a bactéria Wolbachia – capaz de reduzir tanto a sobrevivência deles como a chance de os mosquitos se infectarem com o vírus e retransmitirem dengue, zika ou chikungunya 5) Uso das estações disseminadoras de larvicida (EDL) – método mais barato que consiste em utilizar potes pretos de plástico, com panos pretos impregnados de inseticida que contaminam os mosquitos que pousam ali e depois vão, eles mesmos, contaminar outros criadouros. |
Na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, os pesquisadores revisaram todas essas tecnologias e defenderam a incorporação delas no Brasil, a fim de evitar epidemias de dengue como a última, de 2024.
“O fato é que não existe uma bala de prata, ou seja, é bom ter diferentes tecnologias até para o gestor, junto com a equipe local, decidir em qual delas vai investir, qual delas vai aplicar, e pode até ser também que haja uma combinação de técnicas. O importante é essas tecnologias funcionarem, estarem disponíveis e todos estarem treinados para aplicá-las da melhor forma possível”, avalia Gurgel.
MOSQUITO RESISTENTE – Ter várias técnicas disponíveis é importante também porque é de se esperar que, em dado momento, um número desses insetos comece a apresentar resistência ao inseticida utilizado.
Isso pode ocorrer devido a diversos fatores, como mecanismos que envolvem a própria superfície do corpo do mosquito ou mesmo alterações em características genéticas, por exemplo. Por isso é necessário seguir com o monitoramento da resistência das populações de mosquitos que estão no país.
“Felizmente esse monitoramento nacional de resistência existe, a Fiocruz está envolvida e aqui na Universidade de Brasília temos professores que trabalham com isso. É interessante ter esses mapeamentos, porque o governo consegue apontar em que regiões já aconteceu essa resistência e, consequentemente, nessas regiões há uma troca do inseticida usado para combater o Aedes aegypti. Isso é vigilância”, detalha o professor da Faculdade de Medicina da UnB.
Outra característica do mosquito que mostra sua força é a capacidade de seus ovos sobreviverem por mais de seis meses em períodos de seca. É a resistência à dessecação.
“Então, se na última chuva, lá de abril, o mosquito colocou um ovo em determinado local, esse ovo vai ficar ativo até a primeira chuva que volta a acontecer em setembro ou outubro, e aí ele vai dar origem a uma larva se tiver ali água da chuva – então vai ter um criadouro. Isso é um problema. Por isso que uma das recomendações do Ministério da Saúde para a população é lavar a borda das caixas d'água, a borda das piscinas, justamente para eliminar os ovos”, ensina Gurgel.
Vale lembrar que a vigilância e o controle devem ocorrer durante todo o ano, mesmo sem chuvas.
Na Universidade de Brasília, um grupo de trabalho (GT) foi criado no início de 2024 para atuar no combate a possíveis focos de proliferação do mosquito da dengue nos campi. Estações Disseminadoras de Larvicidas foram distribuídas pelo campus Darcy Ribeiro, e o monitoramento será feito até o final da estação chuvosa, em 2025.
O grupo, que conta com nove servidores e 27 estudantes, entre bolsistas de extensão e iniciação científica, mestrado e doutorado, realiza semanalmente vistorias e monitoramento de eventuais focos de larva do Aedes aegypti e orienta sobre práticas de prevenção.