Wildo Navegantes é epidemiologista e professor de graduação em Saúde Coletiva, Enfermagem, Fisioterapia, Farmácia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional na Faculdade UnB Ceilândia (FCE/UnB). Atua principalmente em temas como estudos epidemiológicos de doenças infecciosas, investigação de surtos e avaliação de sistemas de vigilância epidemiológica. No início de fevereiro, foi entrevistado pela UnBTV acerca do surto de dengue que tem avançado pelo Brasil e, em especial, pelo Distrito Federal, local mais afetado na proporção de casos por número de habitantes.
O cenário epidêmico levou o governo do Distrito Federal (GDF) a decretar situação de emergência em saúde pública. De acordo com o mais recente boletim epidemiológico de dengue no DF, elaborado pela Secretaria de Saúde do DF, até a primeira semana de fevereiro, já haviam sido notificados 67.897 casos prováveis da doença em 2024. Comparado ao mesmo período do ano passado, há um aumento de 1.303,9% nas notificações.
A conversa com o docente está descrita abaixo e trata, entre outros pontos, sobre prevenção, vacinação e sobre como identificar os sintomas da doença*.
Rafael Corrieri, UnBTV – Professor, é importante termos um contexto da situação atual. Como o senhor avalia a cena da dengue no DF e quais os principais fatores que levaram a esse caso?
Wildo Navegantes – Eu vou começar fazendo uma observação importante do ponto de vista da dengue em boa parte dos países nas Américas. Na América Central, nós estamos tendo a maior epidemia de dengue nos últimos tempos, nunca aconteceu isso. Na América do Sul também está acontecendo um surto e o Brasil, que está agregado dentro da América do Sul, carrega uma carga imensa de dengue. E, infelizmente, o DF é um dos líderes em relação à epidemia no país. São mais de trinta mil casos, quatro óbitos confirmados, alguns ainda em investigação. De fato, o cenário está bastante complicado para nós em 2024.
Quando é necessário a população procurar um atendimento médico? É possível ser um paciente assintomático?
De fato, a dengue pode causar pacientes assintomáticos e isso favorece inclusive que essas pessoas possam fazer parte do processo de transmissão. O mosquito pica esse indivíduo e depois ele pode transmitir para outro. Mas boa parte dos casos costuma ter quadros leves. Por isso, é importante destacar o quadro leve da dengue separado do quadro mais complexo da dengue – esse segundo merece um pouco mais de cuidado. O quadro leve consiste em dor muscular, febre alta, e dor atrás dos olhos, quando você os movimenta e sente dor, nós a chamamos de dor retro orbitária. A febre alta você não entende de onde vem e sente bastante dor e bastante cansaço.
Voltando um pouco sobre a questão do número de casos, Brasília está chegando a dez vezes mais casos do que no restante do Brasil. Por que isso ocorre?
Esse é um ponto interessante. Nós dizemos que a dengue é uma doença bastante cíclica. Ou seja, acontece a cada período de tempo, com maior intensidade. Nós como sociedade, população e gestão governamental permitimos que tenhamos resíduos à disposição para as fêmeas depositarem seus ovos. Elas eclodem e aí fazem o que nós chamamos de infestação predial. Então, esse é um fenômeno muito importante.
E quando é que nós deveríamos nos preocupar com isso? Justamente antes do período que a dengue acontece aqui no DF. E dessa vez, todos nós relaxamos devido à pandemia de covid-19. Nós relaxamos, esquecemos da dengue e ela retornou. A dengue tem quatro sorotipos. No ano passado, havia circulação de um sorotipo, o sorotipo dois, e este ano aparece ser o tipo um. E, na verdade, o país já está com a circulação dos quatro sorotipos ao mesmo tempo. Isso pra nós é terrível porque uma pessoa que foi infectada anteriormente por um tipo desse vírus e foi infectado por um outro tipo pode ter um quadro bastante grave levando até ao óbito.
Quais são as diferenças entre esses sorotipos?
As diferenças são genéticas. É importante entender que há uma técnica sorológica para identificar os quatro em separado. Mas, o principal não diz respeito a sua tipificação, diferente de outros micro-organismos. Para a gente, população de forma geral, é importante saber se nós tivemos diferentes infecções por diferentes vírus, assim nós vamos identificar um quadro clínico mais complexo. A diferenciação do ponto de vista genético não importa muito nesse momento, o que importa é que nós nos cuidemos para evitar com que tenhamos, portanto, novas infecções.
Como o senhor avalia a preparação e a capacidade do SUS [Sistema Único de Saúde] em realizar o atendimento a essas pessoas que necessitam?
Essa pergunta é importante. O nosso Sistema Único de Saúde está aí para atender a população. É traumático dizer isso, mas essa é uma doença que só acontece se nós, como sociedade, deixarmos acontecer. E, aí, termina tendo a população de pagar pelo ônus no atendimento, onde o posto de atenção primária, como os centros de saúde [Unidade Básica de Saúde, UBS] ou uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] está com uma demanda historicamente exacerbada e nós precisaríamos ter uma estrutura muito melhor para atender. Quando nós estamos em processo de epidemia, o que acontece é o abarrotamento desse sistema de saúde diminuindo a viabilidade da melhor atenção, incluindo para as outras doenças.
A vacina contra a dengue é novidade este ano. Atualmente, a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] liberou duas marcas, a Qdenga e a Dengvaxia. Quais são as diferenças entre elas levando em consideração a eficácia, a disponibilidade e o público-alvo?
Eu vou comentar sobre a Qdenga porque, de fato, é ela que está disponível no mercado, tanto público quanto privado. Ou seja, já registrada e em condição de uso. A Qdenga é uma vacina que tem dupla dose, com separação de três meses da primeira dose para a segunda. Isso é um complicador mas, ao mesmo tempo, é uma das armas que nós temos para o controle. É uma das medidas de controle. Mas não necessariamente deveria ser a única. Por quê? Porque o mosquito não transmite só a dengue. Transmite chikungunya, transmite zika vírus. Então temos que ter a preocupação preventiva de evitar que haja, de fato, infestação em altos níveis.
Voltando para a vacina, ela está indicada para pessoas que têm entre seis a sessenta anos de idade, portanto não é indicada para pessoas abaixo dos seis anos. Não é indicada para bebês e crianças muito jovens receberem essa vacina. Porém, ela já está disponível no sistema privado e sabemos que está custando por volta de R$320 a R$410. Ao mesmo tempo, a empresa que produz essa Qdenga, uma empresa japonesa, ainda não tem grande capacidade de entrega para o Governo Federal e o Sistema Único de Saúde.
As doses estão chegando e o Ministério da Saúde está endereçando-as para 152 municípios dentre os mais de cinco mil que temos no país, entendendo que nesses lugares estão acontecendo a maior dinâmica de transmissão da doença, e, ao mesmo tempo, indicando para crianças e jovens até seus dezesseis anos, sendo alvo inicial dessa vacina. Esperamos que, assim, a indústria consiga entregar uma quantidade maior. O que ocorrerá, provavelmente, só no ano que vem. Assim, é possível que nós tenhamos uma oferta maior para outras faixas etárias.
Outro dado importante: uma publicação saiu recentemente falando sobre uma outra vacina, agora brasileira, produzida pelo Instituto Butantan, que contou com auxílio da Universidade de Brasília. Professores aqui do quadro da UnB participaram do ensaio clínico da vacina. Saiu ontem uma publicação mostrando a sua eficácia e deveremos ter, muito em breve (2025 ou 2026), uma vacina brasileira que vai favorecer a redução do custo e uma oferta maior para população brasileira como um todo, incluindo o DF.
Fazendo um paralelo com a pandemia de covid-19, a vacina para esse vírus foi produzida muito mais rápido. Qual a diferença entre uma doença e a outra? A dengue existe há mais de 100 anos. Qual motivo levou à demora da criação de um imunizante?
A dengue é uma das doenças que foram classificadas como doença negligenciada. E é uma enfermidade que não acontece em boa parte do mundo, como países de primeiro mundo. Agora nós estamos tendo algumas epidemias na Itália e França, mas são epidemias pequenas e menores. Já aconteceu também na ilha da Madeira, em Portugal. Mas, ela é basicamente uma doença tropical e acontece em países que são relativamente mais frágeis do ponto de vista de estrutura e renda média. Com menos condições de implementar uma vacina. Então, o mercado das doenças, digamos assim, puxa pelo interesse daquilo que se vende mais. Existem outras doenças que têm maior apelo e, por isso, a indústria se preocupa um pouco mais.
Ao mesmo tempo, existem as dificuldades relacionadas aos vírus. Nesse caso, o coronavírus é um único vírus, onde boa parte da estrutura daquele vírus foi usado para fazer as vacinas e o mecanismo de resposta foi, vamos dizer assim, mais fácil. Pois já se sabia produzir esse produto. Já sobre a vacina para a dengue, estamos falando de um imunizante que possui quatro sorotipos distintos. Para você fazer uma vacina e depois testá-la, é importante que, naquele lugar onde estão acontecendo os casos, esses sorotipos possam estar circulando.
A Qdenga, por exemplo, foi feita em um contexto em que os países estavam com circulação dos quatro vírus. E aí você testa essa vacina em populações que estão passando por aquele problema. O imunizante do Butantan, que deve sair após o registro na Anvisa, foi avaliado em um contexto no Brasil de circulação de dengue tipo um e dois. Não havia circulação dos tipos três e quatro no momento dos testes. Isso agrega uma dificuldade a uma vacina em um ambiente que já está acontecendo aquela doença.
Sabemos que é sempre importante evitar o contágio e diminuir a proliferação do mosquito da dengue. Quais cuidados as pessoas devem tomar, principalmente numa época de epidemia? O senhor acredita que, em algum momento, vai ser possível erradicar a dengue?
Eu diria que é quase impossível erradicar a dengue em um contexto em que 70 a 80% da população brasileira vive em áreas urbanas. Em sua grande maioria, nas grandes cidades. Essas grandes cidades brasileiras foram agregando conurbação urbana, estruturação urbana, sem muito controle. Se não houver controle ambiental e não tiver controle estrutural, fica muito viável que os mosquitos se proliferem em locais que você não visualiza. Locais como calhas de telhas e bocas de lobo, onde não visualizamos a água em poças, ou seja, são cenários que não favorecem muito o controle.
Ao mesmo tempo, vivemos em um ambiente com a temperatura média e umidade do ar agradável. Claro que o DF tem aquele período da seca, mas os ovos permanecem no ambiente e, quando recebem a umidade devido à chuva ou à umidade local, se proliferam. Quando a fêmea coloca aquele ovo, ela já põe o ovo infectado. De forma que, quando nós temos uma alta infestação de mosquito, aqueles ovos já nascem com a doença. Com dezenas ou milhares de insetos ao mesmo tempo. Então, é muito importante o controle vetorial, como também o cuidado da população para evitar essa condição de acontecer.
Em paralelo a isso, há o papel governamental de realizar atividades de educação em saúde, além das atividades de controle de resíduos. Ou seja, tirar os lixos de onde não deveriam estar e realizar controles ambientais de uma forma muito mais intensa. E num período que seja preferencialmente anterior ao ciclo natural da dengue no DF.
*Os dados citados na entrevista correspondem à data da gravação, publicada em 2 de fevereiro de 2024.
Confira a entrevista completa realizada pela UnBTV: