MEIO AMBIENTE

Com conteúdo para celebrar a Semana do Cerrado, matéria da edição 21 da revista Darcy abarca singularidades e potencialidades econômicas do bioma, além de ameaças à sua conservação

Segunda maior formação natural de toda América Latina, Cerrado ocupa quase 24% do território brasileiro. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom

 

Um canto vibrante e agudo chama a atenção para uma ave que gorjeia adiante. O pássaro de plumagem preta, azul e branca se destaca no fundo de tom esverdeado. Logo é possível perceber que se trata de exemplar típico da região, a gralha-do-campo. O galho grosso e retorcido sobre o qual pousou é de uma árvore de tronco forte e casca áspera e rugosa: um imponente pequizeiro de quase 10 metros de altura.

 

No solo, entre a folhagem seca, destacam-se belas flores alaranjadas. Conhecida como para-tudo ou perpétua, essa planta rasteira é utilizada pelos nativos não só pelo aspecto ornamental, como também pelo poder medicinal. Um barulho vindo do matagal expõe um animal à espreita. Tem pelagem cinza, com uma diagonal preta bordejada de branco que se estende até o peito. A marca registrada – o focinho comprido, afilado – não deixa dúvidas: trata-se de um tamanduá-bandeira, que está ali em busca de seus alimentos preferidos: cupins e formigas.

 

Ao lado, um arbusto de caule fino e ereto, com folhagem em tufos, lembra as emas, animais típicos do Cerrado. Não é à toa que popularmente é chamado de canela-de-ema. Quando floresce, as flores podem ser brancas ou lilases. Um curso d’água acompanha as veredas, de onde se avistam dezenas de palmeiras. Com folhas em formato de leque, os buritis alcançam 30 metros e seus frutos são revestidos por escamas de tom castanho-avermelhado que embelezam ainda mais os buritizais.

 

A diversidade deste ambiente impressiona, encanta e desperta curiosidade. O cenário que acaba de ser descrito dá apenas uma pequena noção do que constitui o Cerrado brasileiro, que abriga milhares de espécies de vegetação e uma fauna muito diversa de invertebrados, anfíbios, répteis, peixes, aves e mamíferos. Localizado no coração do Brasil, ocupa uma área de dois milhões de quilômetros quadrados, que correspondem a cerca de 24% de todo o território brasileiro. É considerada a savana mais rica do mundo, detendo 5% das espécies de todo o planeta e 30% da biodiversidade nacional.

 

>> Confira a edição 21 da Darcy, com dossiê dedicado ao Cerrado brasileiro

 

“O Cerrado possui várias fisionomias. O de tipo restrito é composto por árvores tortuosas mais espaçadas. Já o campo limpo mostra-se formado por gramíneas, enquanto o campo sujo tem arbustos e rochas. Há ainda a formação florestal, o chamado Cerradão, constituído por árvores mais altas cujas copas se tocam", esclarece o professor do Departamento de Engenharia Florestal da UnB Paulo Ernane Nogueira da Silva.

 

O que torna o Cerrado tão singular é justamente seu posicionamento estratégico, que lhe permite conectar-se com quatro dos seis biomas brasileiros: a Amazônia, a Caatinga, a Mata Atlântica e o Pantanal. Apenas não faz divisa com os Pampas, no sul do país. Ocupando boa parte do Planalto Central com altitudes médias, esse tipo de savana alimenta ainda três aquíferos subterrâneos.

 

“No Distrito Federal, na Estação Ecológica de Águas Emendadas, uma nascente flui para lados opostos, formando rios que desaguam em bacias hidrográficas distintas e vão para a Bacia do Prata e a Amazônica. Esses cursos d’água interligam todas essas regiões do Brasil”, explica o professor. Até recentemente, pouco se sabia sobre esse complexo ecossistêmico, em termos de informações técnicas e especializadas.

 

No fim dos anos 1980, a Universidade de Brasília (UnB) integrou o projeto Conservação e Manejo da Biogeografia do Bioma do Cerrado (CMBBC). A cooperação técnica reuniu diferentes áreas da Universidade, como Engenharia Florestal, Botânica, Ecologia e Zoologia, assim como vários outros órgãos de pesquisa no Brasil e no exterior, com destaque para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Jardim Botânico de Brasília e o Jardim Botânico Real de Edimburgo, na Escócia. A iniciativa durou mais de duas décadas e recebeu financiamento do governo federal e do Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido (DFID, da sigla em inglês).

Árvores do Cerrado embelezam a paisagem do campus Darcy Ribeiro da UnB. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom

 

Paulo Ernane conta que o grupo percorreu o Cerrado do Brasil inteiro, estudando, de forma multidisciplinar, toda a vegetação, a fauna, a flora, os solos. Foram registradas descobertas de novas espécies, e isso resultou em novos trabalhos de pesquisa. Para se ter uma ideia da expansão deste trabalho, até então estavam catalogadas cerca de 120 espécies vegetais do Cerrado, e hoje elas alcançam a casa do milhar.“Na última publicação já constavam mais de 7 mil exemplares da flora vascular, que corresponde a árvores, arbustos e herbáceas”, informa o professor. Atualmente, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), mais de 11 mil espécies nativas estão devidamente descritas e catalogadas.

 

DEVASTAÇÃO SEM PRECEDENTES – A etimologia da palavra Cerrado faz referência a qualidades como fechado ou denso. No entanto, a realidade tem mostrado que o bioma está cada vez mais devastado e já perdeu pelo menos metade da vegetação nativa. Segundo o relatório da ONG Fundo Mundial para a Natureza (WWF, 2018), a redução das áreas verdes do Cerrado é maior do que a da Floresta Amazônica, que, desde a década de 1970, perdeu 20% da cobertura original. Se a Amazônia já reduziu em torno de 700 mil quilômetros quadrados sua mata nativa, a devastação do Cerrado é da ordem de 1 milhão de quilômetros quadrados.

 

Os dois biomas têm tratamentos bastante diferenciados por parte do poder público e as instâncias governamentais. A própria Constituição Federal ignorou o Cerrado no parágrafo quarto do artigo 225, que trata dos patrimônios nacionais. Há mais de 20 anos, estão em discussão propostas de emenda constitucional (PEC 115/95 e 504/10) para incluir o Cerrado e a Caatinga no texto.

 

Atualizado em 2012, o Código Florestal brasileiro não contribuiu para minimizar os impactos nocivos do desmatamento na região Centro-Oeste. Enquanto na Amazônia a reserva legal em todas as propriedades rurais é de até 80%, no Cerrado é de apenas 20% ou 35%. Para o sociólogo e professor aposentado da UnB Donald Sawyer, a diferença de proteção incentiva o plantio na área central do país. Inclusive, as políticas que protegem a Amazônia podem impactar negativamente o Cerrado.

 

Quando se compara a produção nacional de alimentos, fibras e bioenergia, a participação do Cerrado é muito expressiva. Conforme o boletim da Embrapa Cerrados (2017), a maioria das commodities contribui com quase 50% de tudo que é produzido no país: algodão (98%), sorgo (89%), carne (55%), soja (49%), milho (49%) e cana-de-açúcar (47%). Aliado ao plantio de soja, a pecuária também tem influência na redução drástica da vegetação nativa. A soja é um dos grãos que mais avançam em expansão territorial. A estimativa de produção da soja na safra 2018/2019, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), é de 273,3 milhões de reais, em uma área de plantio de 60 milhões de hectares.

Rico em biodiversidade animal e vegetal, Cerrado tem sido ameaçado pelo avanço da fronteira agrícola. Foto: Marcelo Jatobá/Secom UnB

 

“O agronegócio no Cerrado se intensificou muito nos anos 1980, principalmente a partir da adaptação da soja para o clima tropical, com técnicas de correção da acidez do solo e uso de fertilizantes”, observa Sawyer. Em sua percepção, o arco do desmatamento está justamente na transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, região de maior impacto: “A criação de gado se tornou uma forma de especulação fundiária, uma vez que pode entrar em pastagens cheias de tocos, onde não dá para cultivar a soja”.

 

O jogo de forças entre o agronegócio e a preservação ambiental fica evidente na região Matopiba, expressão criada a partir de acrônimo com as iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Designada como a última fronteira agrícola do país, a área geoeconômica Matopiba foi formalmente oficializada pelo governo federal em 2015, abarcando 337 municípios em 73 milhões de hectares. De acordo com a coordenação geral de observação da terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os quatro estados somaram 8.754 quilômetros quadrados de desmatamento em 2017 e 2018, o que corresponde a mais de 60% da perda de todo o Cerrado nesse período.

 

Para o professor, estamos em um tipping point, ponto de inversão ou de inflexão, pois o desmatamento do Cerrado tem contribuição direta e indireta para o aquecimento global: “Indiretamente, por meio da emissão de gases de efeito estufa. Há muito mais carbono nessa região do que se percebe, tendo em vista que a maior parte é biomassa subterrânea. Além de gás carbônico, também há grandes emissões de metano do gado e óxido nitroso a partir dos fertilizantes utilizados. Pela via direta, a terra desmatada aquece mais, aumentando a temperatura do ambiente”.

 

O ritmo acelerado de destruição das matas nativas também tem alterado o ciclo hidrológico. “Quando a chuva cai numa área desmatada, boa parte da água escoa e vai para os córregos, rios e mar. A água não se infiltra para alimentar lençóis freáticos e aquíferos. A própria evapotranspiração das plantas, a partir da qual as raízes profundas buscam água e as folhas no processo de fotossíntese captam CO2, gera novas nuvens e estimula a precipitação pluviométrica”, destaca Sawyer. Outro fator que precisa ser levado em conta é que o tempo mais seco, além de prejudicar o crescimento da vegetação, também aumenta o risco de incêndios. “Todos esses efeitos interagem entre si com retroalimentação, então poderíamos entrar numa espiral descendente e catastrófica”, alerta.

 

“Para muitos, o Cerrado não vale nada e seu papel deveria ser o de celeiro do mundo em termos de produção de alimentos de diversos tipos, bem como de algodão e etanol”, diz, acrescentando que, em sua opinião, os processos econômicos e estruturais interagem com as políticas públicas de uma forma muito infeliz para esse grande ecossistema. “Isso tem consequências diretas e profundas sobre comunidades locais, povos tradicionais e mesmo indígenas. Isso porque só se pensa na Amazônia e é conveniente para o governo e para a indústria no Brasil.”

 

>> Leia a íntegra da matéria na edição 21 da revista Darcy

 

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