COVID-19

Enquanto o Brasil registra 600 mil mortes causadas pelo novo coronavírus, especialistas da UnB analisam os cenários do país e servidores relatam as lembranças dos que se foram

600 mil • Um instante de silêncio em memória aos mortos por covid-19 e em respeito a direitos fundamentais - informação, saúde e vida. Arte: Igor Outeiral/Secom UnB

 

 


“Meus pais tinham muitos compadres e comadres. Eles eram convidados
para apadrinharem as crianças, tinham uma empatia enorme pelo outro.
Na memória, fica a ética, a honestidade, a noção de solidariedade.
Para homenageá-los, agradeço o empenho de formar três dos seus quatro filhos”.

○ Liliane Machado, professora da UnB. Perdeu a mãe Hyramnita e o pai Lázaro, vítimas da covid-19 ○

 

 

“Ela deixou uma filha de 10 anos e um lar de muito amor.
Era mãe solo, sustentava a sua família. Uma pessoa iluminada,
que irradiava amor e alegria por onde passava. Sua risada preenchia o ambiente.
Mirinha era muito amada. Chega a ser difícil falar. Minha tia chora toda noite de saudades da filha”.

○ Lanuzia Nogueira, relações públicas da UnB. Perdeu a prima Semírames, vítima da covid-19 ○

 

 

“Meu irmão era extremamente obstinado em seus propósitos,
muito dedicado à família e aos filhos. Meu pai era uma figura ímpar, muito estudioso, inteligente.
Tinha verdadeiro prazer pela leitura e pela política. Uma pessoa simples, que veio do Piauí,
se tornou economista pela UnB e era servidor federal aposentado pela Funai”.

○ Virgínia Soares, programadora visual da UnB. Perdeu pai e irmão, vítimas da covid-19 ○

 

 

“Meu irmãozinho, de cinco anos, perdeu o pai e a mãe no mesmo dia. Um domingo de Páscoa.
O maior legado deixado por eles foi o amor. Uma história de amor.
O pequeno Luca sabe que o meu pai foi uma pessoa incrível,
um idealista que acreditava na educação, assim como a Anna.
Pessoas de alma gigante que vieram a esse mundo para serem luz”.

○ Ana Paula Fávero, servidora pública. Perdeu o pai, Antônio Fávero Sobrinho, professor da UnB, e a madrasta Anna Paixão, vítimas da covid-19 ○

 

 

A frieza numérica é assustadora: 600 mil vidas silenciadas em decorrência da covid-19 no Brasil. Equivale a dizer que, até agora, a doença matou uma pessoa a cada 350 habitantes. A infecção causada pelo novo coronavírus já é, disparada, a principal causa de óbitos naturais e não naturais no país. Dezenove meses de perdas, dor e sequelas físicas, psicológicas e sociais.

 

Mas os dados, mesmo que impactantes, não conseguem traduzir o sentimento de familiares e amigos que perderam alguém pelo novo coronavírus. Resgatar um olhar humano para a pandemia é missão para quem fica.

 

“Estruturas familiares foram dizimadas por um vírus silencioso e cruel. Crianças ficaram órfãs, esposas e maridos ficaram viúvos, pais e mães ficaram sem seus filhos. Não são 600 mil mortos. Transformar isso em números é cruel. A Semírames, minha prima, não é um número. Raíssa, minha amiga, não é um número”, exclama Lanuzia Nogueira, servidora técnica na Universidade de Brasília.

 

Enxergar humanidade, em tempos de crise, é o caminho possível para combater uma sensação de anestesia, banalizadora e paralisante. “A impressão é a de que entramos em um nível que chamamos de endemia, normalizando a quantidade de mortos e infectados. Não podemos fazer isso. A situação é grave, não é normal. Não é normal”, exclama Jonas Brant, coordenador da Sala de Situação da UnB e docente da Faculdade de Ciências da Saúde (FS).

 

Programadora visual no Decanato de Extensão (DEX), Virgínia Soares lembra com muito pesar do sofrimento diário do irmão, morto em abril, após uma internação que durou 25 dias. Meses depois, em agosto, a servidora também perdeu o pai pela covid-19.

 

“É um buraco que fica, não sei nem dizer. Falei com meu pai numa quarta, ele foi intubado na quinta e faleceu no domingo. Eu estava tentando me recuperar da perda do meu irmão, que foi horrível. A pessoa só piora, é uma agonia sem fim”, se emociona Virgínia.

 

“As notícias são uma vez ao dia e, quando eles não ligam naquele horário habitual, o nosso coração já dispara. Não tivemos nenhum apoio psicológico do hospital particular em que eles ficaram”, acrescenta a técnica da UnB.

 

>> Em nota, reitoria lamenta a partida precoce das 600 mil pessoas vitimadas pela covid-19

Coordenador da Sala de Situação da UnB relacionada as falhas no combate à pandemia à má gestão dos procedimentos necessários em situação como essa. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

CENÁRIOS – Às famílias e amigos, solidariedade. À sociedade, ciência. Diante da trágica marca das 600 mil mortes, a pergunta é quase inevitável: onde erramos? Para Brant, faltou coordenação e liderança, essenciais em contextos que exigem ações de emergência.

 

“Precisávamos de uma mensagem unidirecional, alinhada e com objetivos comuns claramente definidos. Aqui, o próprio presidente da República rema na direção contrária da ciência, promove remédios sem eficácia científica, espalha notícias falsas, incentiva o não uso de máscaras. Isso afeta o nosso processo de resposta à pandemia”, resume.

 

O epidemiologista ressalta, ainda, que a estrutura histórica do Sistema Único de Saúde (SUS) salvou muitas vidas, pois sem ela o Brasil estaria em situação ainda mais delicada. Mas o país falhou, segundo Brant, nas etapas fundamentais de preparação e de contenção da covid-19.

 

“A estratégia brasileira foi baseada na premissa de que inevitavelmente a onda iria chegar. Logo, a saída era se preparar para deixá-la passar. Ao contrário dos países que lidaram melhor com o combate à pandemia, que trabalharam efetivamente no controle dessas ondas”, explica.

 

O coordenador da Sala de Situação da UnB detalha que o Brasil não adotou as ações internacionalmente aceitas para frear a doença, como a ampliação expressiva da testagem, o rastreamento dos casos, o isolamento das pessoas suspeitas e de seus contatos e as medidas de apoio social e econômico para garantir o distanciamento físico. Ao longo de 2020, a Secretaria de Comunicação da UnB deu visibilidade a pesquisas feitas dentro da Universidade que ressaltavam a importância dessas ações.

 

Na visão de Brant, também não houve o fortalecimento das ações de vigilância sanitária e de vigilância da saúde do trabalhador para garantir ações mínimas de biossegurança e não foram adotadas restrições efetivas para a movimentação de pessoas nos momentos mais críticos. O resultado culminou no número absurdo de casos, mortes e na sobrecarga da rede hospitalar.

 

“Os níveis são tão altos que, em nenhum momento, reduzimos os impactos da epidemia a ponto de ficarmos em uma posição de conforto, mesmo que temporária. São dezenove meses sem intervalos de respiro, que muitos países alcançaram entre uma onda e outra. Sem fechamentos e restrições efetivas, esse momento de relaxar um pouco as ações para que a sociedade viva e se reorganize nunca chegou”, analisa Brant.

 

Entre os gargalos do presente, o presidente do Comitê Gestor do Plano de Contingência da Covid-19 (Coes) da UnB e docente da Faculdade UnB Ceilândia (FCE), Wildo Navegantes, ressalta a baixa cobertura da atenção primária, que reduz a possibilidade de ação direta na comunidade, a reduzida oferta de testes, o frágil monitoramento da circulação viral e a reabertura não planejada de espaços que permitem grandes aglomerações.

 

“Aplicamos proporcionalmente menos testes do que o Iraque. As escolas voltaram, mas não existe testagem frequente dos professores e alunos. Aliás, quase não testamos crianças que, mesmo usualmente apresentando sintomas mais leves, estão expostas e transmitem o vírus”, complementa Tarcísio Rocha Filho, do Instituto de Física (IF).

 

O professor é membro de um grupo de pesquisa interdisciplinar sobre o avanço da covid-19, e acrescenta como desafios para o enfrentamento da doença no país a limitada quantidade de vacinas, além da enxurrada de informações equivocadas sobre o vírus e sobre o controle da pandemia.

Professora do IB, Anamélia Lorenzetti Bocca defende que imunização completa de 75% da população é necessária para que se pense em afrouxar as medidas de biossegurança. Foto: Arquivo pessoal

 

VACINAS – Todos os especialistas consultados pela reportagem são unânimes ao afirmar que o Brasil só terá um mínimo de respiro frente à covid-19 quando alcançar um nível satisfatório de vacinação em massa. “Os dados mostram que o arrefecimento mais efetivo ocorre quando 75% da população está totalmente vacinada, com o esquema de imunização completo. O Brasil não chegou a 40%”, pondera Anamélia Lorenzetti Bocca, professora do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB.

 

A pesquisadora alerta que o índice não é considerado alto, mencionando que o sarampo, por exemplo, precisa alcançar uma imunização de 90% das crianças para atingir resultados efetivos. “Com o ritmo atual, já temos visto a redução no número de óbitos pela doença. Mas a imunização precisa aumentar.”

 

“Precisamos vacinar todo mundo mais rápido possível. Esse é o caminho. Inclusive, para evitar que novas variantes mais transmissíveis se espalhem desenfreadamente”, comenta o professor Bergmann Ribeiro, que mapeia as características genéticas do vírus em pesquisas no IB.

 

O especialista informa que as variantes do novo coronavírus que mais circulam no Brasil, no momento, são a delta e a gama, com destaque para a primeira. “Os vírus mudam ao longo do tempo. Dominam aqueles que conseguem se propagar mais rapidamente. Por isso que uma variante como a delta se espalha. As análises de genomas são aleatórias, mas percebe-se que ela já predomina em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.”

 

Anamélia Lorenzetti Bocca concorda quanto à necessidade de acelerar a vacinação. “As pesquisas mostram que as vacinas possuem alto grau de proteção contra essas variantes. A urgência é a mesma. Precisamos do maior número possível de pessoas com a imunização completa”, enfatiza.

 

Para Bocca, apesar de toda expertise brasileira com o Programa Nacional de Imunizações (PNI), falta coordenação institucional centralizada para ampliar, com velocidade, o processo de imunização no Brasil.

 

“O Ministério da Saúde precisa assumir melhor o controle sobre a distribuição das vacinas. Ainda há uma desigualdade enorme entre estados e municípios. Apesar da orientação inicial, não existe acompanhamento e os governos locais e regionais estão assumindo sozinhos as articulações. Neste momento, também observamos oscilações nas liberações para a segunda dose”, aponta.

 

Diminuir a influência política em decisões técnicas também é fundamental, na análise da pesquisadora. “O governo federal voltou atrás em relação à vacinação dos adolescentes, sem oferecer informações claras e que embasam esse recuo. Precisamos, na verdade, de uma disponibilidade ainda maior de vacinas”, sintetiza.

 

Um ponto importante destacado por Tarcísio Rocha Filho é que a vacina não impede a transmissão do vírus, embora reduza as chances de sintomas mais graves da doença. “Significa dizer que a única saída é vacinar quase a totalidade da população, o mais rápido possível. Provavelmente, teremos que receber uma dose de reforço todo ano, como é o caso da gripe. Enquanto isso, teremos que lidar com surtos de covid-19”, avalia o docente, que ainda projeta uma nova onda de casos no Brasil para as próximas semanas.

 

DISTRITO FEDERAL – Coordenador da Sala de Situação da UnB, Jonas Brant alega que a situação vivenciada no Distrito Federal é muito representativa do cenário médio brasileiro, com pouco investimento na atenção primária e, consequentemente, uma rede de saúde frágil.

 

“É a atenção primária que organiza as ações de promoção e prevenção à saúde. Seus profissionais conhecem as pessoas, sabem onde estão os diabéticos, os hipertensos, os idosos. A ausência dessa rede coloca o DF dependente da estrutura do hospital que, em um cenário de pandemia, é voltado para lidar com as consequências da doença, e não no controle. Sem esse controle, é como tentar conter uma goteira enxugando o chão e não consertando o teto”, compara Brant.

 

O docente reconhece que o governo local está contratando agentes comunitários de saúde, mas a ação é temporária. Ainda assim, o fortalecimento da estrutura de atenção básica auxiliará na identificação das pessoas mais vulneráveis, bem como na integração entre os sistemas de saúde e de assistência social.

 

“Temos que apoiar as famílias, entender onde o vírus circula, detectar os casos, isolar os grupos em suspeita e prestar apoio para que eles possam enfrentar esse momento difícil”, sinaliza Brant.

 

Frente a este cenário, o professor da FS exalta a Universidade de Brasília por conseguir mostrar o seu papel estratégico e participar ativamente de todo o processo de preparação e resposta à pandemia, desde o desenvolvimento de pesquisas e soluções tecnológicas para o combate à covid-19 às ações efetivas para evitar que o vírus se espalhasse no Distrito Federal e em regiões próximas.

 

“Para o futuro próximo, destaco o avanço da vacinação, que começou a chegar aos jovens. Se conseguirmos entrar no início do próximo ano com um nível de transmissão mais baixo, é provável que no primeiro semestre de 2022 tenhamos condições de retorno presencial paulatino, gradual e planejado. Um retorno para a construção de novas relações, com biossegurança, conforto e apoio às pessoas, e não para o aumento da ansiedade, do sofrimento e do risco de transmissão da covid-19.”

 

Com a autorização da entrevistada, a Secom/UnB disponibiliza abaixo o áudio do depoimento de Ana Paula Dantas Fávero. No mesmo dia, a servidora pública perdeu o pai, Antônio Fávero Sobrinho, professor da Faculdade de Educação da UnB, e a madrasta, Anna Angélica Oliveira Paixão. Um relato de dor, amor e esperança para tempos difíceis.

 

 
ATENÇÃO – As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seus conteúdos. Crédito para textos: nome do repórter/Secom UnB ou Secom UnB. Crédito para fotos: nome do fotógrafo/Secom UnB.

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