PROTAGONISMO

No mês de aniversário da UnB, conheça a trajetória daquelas que marcaram a instituição nestes 60 anos

UnB celebra os protagonismos femininos e as contribuições de mulheres para a instituição. Arte: João Paulo Parker/Secom UnB

 

No mês em que se comemora o aniversário de 60 anos da Universidade de Brasília (UnB), a Secretaria de Comunicação apresenta histórias de algumas mulheres que deixaram grandes legados para a UnB e inspiram novas gerações de estudantes e professoras.

 

A seleção de nomes foi feita pela pesquisadora Tânia Fontenele, recém-doutora em História Cultural, Memórias e Identidades pela UnB, que busca mapear memórias de mulheres em eventos históricos, muitas vezes esquecidas ou ofuscadas. Conheça algumas personagens que marcaram a trajetória da Universidade.

 

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CULTURA – O ano é 1962. A Universidade de Brasília era fundada, dois anos depois da nova capital do país, Brasília. O mundo vivenciava a Guerra Fria, a seleção brasileira de futebol conquistava seu segundo título na Copa do Mundo e o presidente era João Goulart. Neste ano, a jornalista belga Yvonne Jean chegava a Brasília e à UnB, onde, a convite do antropólogo Darcy Ribeiro, trabalharia no Centro de Extensão Cultural.

A jornalista belga Yvonne Jean foi convidada por Darcy Ribeiro para trabalhar no Centro de Extensão Cultural. Foto: Arquivo Público do DF

 

Judia, Yvonne chegou ao Brasil com a família aos 29 anos, em 1940, fugindo da invasão nazista a seu país. Dez anos depois, naturalizou-se brasileira e, antes de migrar para Brasília, morou no Rio de Janeiro e em São Paulo. Neste meio tempo, trabalhou como tradutora, arte-educadora e jornalista em diversos veículos de comunicação do país. No Correio Braziliense, assinava a coluna Esquina de Brasília, com observações sobre o cotidiano da nova capital.

 

A amiga Reneé Simas, de 86 anos, lembra que Yvonne reunia colegas em sua casa na W3 Sul para saraus improvisados. Dona de uma biblioteca “fantástica” – nas palavras de Reneé –, a jornalista transformou-se em uma personalidade na cena cultural de Brasília.

 

“Ela tinha muita cultura, reunia muita gente na casa dela para conversar sobre arte, cultura em geral e política. Tinha sempre uns saraus na casa dela que eu e outros amigos íamos. Era uma coisa muito boa, muito rica para uma Brasília que na época estava sem atividades culturais”, lembra Reneé.

 

Sobre a personalidade da amiga, Reneé rememora: “Ela era aquele estilo europeu, não era esse estilo brasileiro de sair dando beijinhos e abraços. Era um estilo mais reservado, mas que demonstrava muito carinho e muita amizade”.

 

Na Universidade de Brasília, sua atuação no Centro de Extensão Cultural consistia em organizar cursos e palestras com artistas locais e de outros estados. No entanto, o golpe militar impactou a vida de Yvonne, assim como a própria Universidade, que foi alvo de diversas invasões por tropas militares. “Ela não falava muito [da UnB] porque acabou sendo um contexto muito difícil, acho que ela ficou muito marcada pela não possibilidade”, lamenta Reneé. “Ela saiu [da UnB], ela teve que sair. Era um clima todo... não era só na UnB, era na cidade, no país. Era tudo muito difícil.”

 

Em 1971, Yvonne foi condenada a um ano de prisão, acusada de envolvimento em “práticas subversivas”. Após recursos ao Superior Tribunal Militar, teve a pena convertida em prisão domiciliar em razão de sua saúde frágil (à época, Yvonne tinha 60 anos). A jornalista faleceu em 1981, pouco antes de completar 70 anos de idade. “Ela tinha esperança de que as coisas mudassem. Que houvesse uma reviravolta na política, e que a cultura tivesse mais espaço. Ficou mais na esperança”, conclui Reneé Simas.

 

COLECIONADORA DE GENTE – Conterrânea do presidente Juscelino Kubitschek, responsável pela construção de Brasília, a mineira de Diamantina Laís Fontoura Aderne chegou à capital federal em 1967, aos 30 anos de idade. Criada em uma família com grandes referências no meio artístico (sua mãe, Celina, era artista plástica e suas irmãs, Silvia e Isa Aderne, são atriz e xilogravurista, respectivamente), Laís estudou Belas Artes em Belo Horizonte. Antes de migrar para Brasília, fez especialização na Espanha e mestrado na Inglaterra.

Arte-educadora, Laís Aderne foi idealizadora da Feira do Troca, em Olhos D’água. Foto: Divulgação

 

Seu filho, o músico Pierre Aderne, define a mãe como uma “colecionadora de gente”: “Minha casa sempre foi rodeada de muita gente, porque ela era uma pessoa muito agregadora. Ela era uma colecionadora de gente, eu era apenas uma das peças de coleção de gente do Brasil todo que ela amava e cuidava”, lembra.

 

Laís e o marido, Armando Faria Neves, trabalhavam no Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem). Idealizado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, o colégio era sediado na UnB e apresentava uma proposta pedagógica inovadora – o que contribuiu para o seu encerramento no regime militar, em 1970.

 

Durante a ditadura, Pierre lembra que a mãe reunia os alunos para “enterros simbólicos” dos desaparecidos políticos. Eles eram realizados no primeiro domingo de cada mês, no Parque da Cidade, quando esculturas eram içadas por balões vermelhos no céu de Brasília.

 

Em 1973, Laís Aderne conheceu o distrito de Olhos D’Água, no município de Alexânia, em Goiás (a cerca de 120 km de Brasília). O vilarejo foi, segundo Pierre, “o grande projeto de vida dela”. A família morou lá por um ano. Foi quando a professora idealizou a Feira do Troca, que até hoje é realizada em Olhos D’água, atraindo turistas da região.

 

“Ela era incansável, parecia que não dormia, acordava com mil projetos na cabeça e nunca teve a ideia de que um projeto primeiro começa com a viabilidade financeira e depois vai a campo”, afirma Pierre. Além da Feira do Troca, Laís também deixou legados importantes, como o EcoMuseu do Cerrado, a Casa da Cultura da América Latina e o Festival Latino-Americano de Arte e Cultura.

 

Em 1989, ela assumiu a Secretaria de Cultura do Distrito Federal, onde permaneceu por um ano. A incansável arte-educadora faleceu em 2007, com um histórico de realizações no campo da cultura no DF e no Entorno. “As pessoas ficaram muito acomodadas, e o maior recado que eu acho que ela deixou foi esse: os projetos têm que existir, independente do orçamento ou das estruturas disponíveis”, avalia Pierre .“E claro, a mensagem de que não se faz nada sozinho”, pontua.

A professora Simone Pinto foi uma das coordenadoras da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade. Foto: Arquivo pessoal

 

MEMÓRIA E VERDADE – As arbitrariedades cometidas durante a ditadura militar na UnB foram investigadas pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade. Entre agosto de 2012 e abril de 2015, o grupo colheu depoimentos de docentes e estudantes perseguidos, analisou documentos do Arquivo Nacional e de outros acervos e realizou audiências públicas.

 

“Foi um processo doloroso e primoroso”, lembra a professora Simone Pinto, designada coordenadora de Redação e Sistematização da Comissão. Docente do Departamento de Estudos Latino-Americanos, antigo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas, desde 2008, ela conta que foi convidada pelo então reitor José Geraldo de Sousa Junior para compor o grupo pouco depois do lançamento de seu livro Memória, Verdade e Responsabilização, em 2012, pela Editora UnB.

 

Mineira de Juiz de Fora, Simone chegou a Brasília em 2002, mas já trabalhava há muitos anos com temas relacionados à violência, como conflitos, genocídios e casos de tortura. Ao chegar na UnB, resolveu usar essa expertise para analisar os regimes ditatoriais na América Latina.

 

Simone explica que a Comissão fez um mapeamento de “locais de memória” dentro da UnB, ou seja, espaços onde ocorreram episódios de violação de direitos humanos.

 

“A gente mapeou bastante dentro da UnB e também procuramos entender os locais de tortura no Distrito Federal. São muito conhecidos o Doi-Codi do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas é pouco explorada a questão dos locais de tortura aqui em Brasília – e havia muitos”, explica a professora, citando como exemplo a área onde hoje funciona a Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

 

“A Comissão da Verdade foi fundamental para a UnB, porque foi uma das universidades que mais sofreram com a ditadura, o que impactou o próprio projeto do Darcy Ribeiro – que era o inovador, de vanguarda, diferente das outras universidades do Brasil”, avalia Simone. “Perdemos naquele momento mentes brilhantes, foi um impacto muito grande para a Universidade. Recuperar isso, lembrar, mostrar os danos causados pela ditadura na UnB foi fundamental”, completa a docente.

 

Ela avalia que o trabalho na Comissão também foi importante para sua formação: “Para mim foi muito gratificante e impactante ter uma noção tão clara do quanto a ditadura criou obstáculo para o crescimento da ciência e tecnologia no Brasil, tomando como base a Universidade de Brasília”. O relatório final da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade está disponível on-line.

 

GOSTO PELO ENSINO – Maranhense, nascida no município de Buriti Bravo, Maria do Perpétuo Socorro Adusumilli formou-se em História Natural pela Universidade Federal de Pernambuco, e lá mesmo iniciou sua carreira como docente.

A professora Maria do Perpétuo Socorro Adusumilli estruturou laboratórios do Instituto de Geociências. Foto: Arquivo pessoal

 

“Eu gosto de ensinar. As minhas colegas falavam sempre que ensinavam, que eram formidáveis e que todos gostavam delas. E eu, na minha humildade, pensava: ‘será que eu vou me dar bem ensinando?’. Graças a Deus ensinei, fui muito feliz ensinando”, lembra a docente, aos 92 anos de idade.

 

Em 1971, ela chegou à UnB. “Quando contei que iria para Brasília, me disseram: ‘ah, você vai para Brasília? Os estudantes lá não respeitam ninguém, tratam mal os professores’. Então eu entrei na sala de aula apreensiva, mas os alunos foram ótimos, excelentes”, afirma Adusumilli, que já desenvolveu trabalhos como pesquisadora na França e na Holanda, além de ter morado por um ano na Índia.

 

Na UnB, ela foi responsável pela criação dos laboratórios de Microscopia e de Difratometria de Raios X no Instituto de Geociências (IG). “Como pesquisadora do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], fiz a solicitação de microscópios e de aparelhos de raio-x da Alemanha e de outros países. Eles vieram com meu nome e eu pensava: ‘meu Deus, está chegando um equipamento do Japão em meu nome, que coisa importante!’”, recorda.

 

Além de trabalhar nos laboratórios, Maria do Socorro Adusumilli dava aulas de Cristalografia e Mineralogia. Entre suas alunas estava a futura reitora da UnB, Márcia Abrahão: “Márcia foi minha orientanda [de iniciação científica] e até hoje é muito minha amiga”, comenta a professora.

 

Acostumada a atuar profissionalmente em ambientes majoritariamente masculinos, ela diz nunca ter sentido qualquer dificuldade em razão da diferença de gênero. “Eu vivi sempre nesse meio de professores homens, mas me dei muito bem. Não tenho o que falar dos meus colegas professores nem dos meus alunos”, avalia.

 

A professora, que saiu de um município que atualmente conta com pouco mais de 22 mil habitantes, ganhou o mundo e se aposentou em 1994. Mas ela garante que permanece ativa: “Não sou daquelas velhinhas que ficam andando encurvadas. Eu me cuido, minha filha não me deixa ficar só dentro de casa”.

A procuradora federal na UnB Soraya Marciano recebeu o título de Mérito Universitário em 2020. Imagem: Reprodução/UnBTV

 

DE ALUNA A PROCURADORA – A brasiliense Soraya Marciano formou-se em Direito pela UnB em 1999. Em 2002, quando já atuava na Advocacia-Geral da União (AGU), voltou aos bancos da Universidade para cursar uma pós-graduação em Direito Público. Doze anos depois, renovou seu vínculo com a UnB: desta vez, como procuradora federal.

 

O que faz um procurador federal na Universidade? “A AGU é um órgão jurídico que presta consultoria e assessoria a diversas entidades, entre elas as universidades federais, como a UnB”, explica Soraya. Assim, ela atua no esclarecimento de dúvidas jurídicas por parte da gestão, e no auxílio junto a processos administrativos, licitações e processos disciplinares.

 

Entre os motivos que a levaram a exercer esta função, está o sentimento de gratidão: “Eu sempre tive um vínculo de muita gratidão pela oportunidade de ter sido aluna da UnB. Eu realmente me sentia em dívida e queria devolver um pouco daquilo que a Universidade investiu na minha formação”, conta a procuradora.

 

Dos tempos de aluna, ela se recorda principalmente da qualidade do corpo docente. “Nós tínhamos realmente um grupo seleto de professores, ministros do STF, outras autoridades, grandes estudiosos, pessoas que foram referências na minha vida profissional”, lembra Soraya. Ela recorda-se com carinho do professor de Processo Civil Jorge Amaury, que faleceu no ano passado, vítima da covid-19.

 

“A minha gratidão maior é porque a gente realmente vê o investimento que a Universidade faz para ter um corpo docente de muita qualidade”, afirma a procuradora, que também destaca as ações organizadas pelo Núcleo de Práticas Jurídicas, em Ceilândia. “Me lembro com muito apreço, agregou muito valor à minha formação ter a oportunidade de realizar atividades de prática jurídica em Ceilândia.”

 

Para ela, a instituição aproximou-se mais da população nos últimos anos: “A Universidade está muito mais aberta. Você tem moradores da Ceilândia que são alunos da UnB. Na minha época isso era exceção”, afirma.

 

Seguindo a mesma lógica, a procuradora busca aproximar o universo jurídico daqueles que não o conhecem. “A minha visão é de que o Direito tem que ser acessível a quem não o domina. Por exemplo: havia uma grande insegurança dos gestores e de diversos servidores em atuarem como prepostos da Universidade em audiências. Tive a ideia de elaborar uma cartilha com orientações detalhadas.”

 

Tanto empenho resultou no título de Mérito Universitário, concedido a Soraya em 2020 como reconhecimento de seu comprometimento com a educação e os esforços em auxiliar a UnB em questões jurídicas.

Eliane Boroponepa foi a primeira mulher indígena doutora em Antropologia Social pela UnB. Foto: Divulgação

 

PIONEIRA – Cerca de 1.250 km separam o município de Barra do Bugres, em Mato Grosso, de Brasília. Eliane Boroponepa nasceu no Território Indígena Umutina, próximo à cidade matogrossense, e veio para a capital federal em 2011 para cursar o mestrado profissional em Desenvolvimento Sustentável.

 

Eliane é graduada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), onde também se especializou em educação escolar indígena. Pouco depois de concluir o mestrado, ela ingressou no doutorado em Antropologia Social, concluído em 2019. O que fez dela a primeira mulher indígena doutora nesta área pela UnB.

 

“O doutorado foi um marco na minha vida enquanto pessoa, enquanto ser humano. É uma grande conquista não somente para mim, mas para todo o meu povo balatiponé-umutina, especialmente por ser uma mulher indígena e estar transitando nesses universos”, conta Eliane.

 

Para ela, a formação não é uma conquista individual, mas coletiva, pois permite pautar a discussão sobre a diversidade cultural e linguística existente no país, possibilitando a aproximação entre os saberes tradicionais do povo balatiponé-umutina e o ambiente acadêmico.

 

“Eu tenho muita honra e me sinto grata por fazer parte desse processo de construção de história”, afirma Eliane. “O que eu desejo para as mulheres e estudantes indígenas é que continuem, eu desejo que sejam persistentes, resilientes e na luta. É uma luta contínua e constante.”

 

Eliane acredita que sua experiência poderá contribuir para quebrar paradigmas e preconceitos, e inspirar colegas a trilharem novos caminhos: “Pois antes os indígenas eram objetos de estudos, e hoje eles podem ser pesquisadores e pesquisar o outro também”, afirma a doutora em Antropologia Social.

 

Ocupar esses espaços “também é uma forma de conquista de políticas públicas e de direitos para os povos indígena, quilombolas e comunidades tradicionais”, avalia Eliane. “Minha tese é a prova de que a Universidade está buscando e acreditando em novos caminhos de produção de conhecimento”, completa.

 

Hoje, aos 43 anos, a pesquisadora mora na aldeia Umutina e é professora e gestora da escola estadual indígena Julá Paré. Sua tese, Aprender o conhecimento a partir da convivência : uma etnografia indígena da educação e da escola do povo Balatiponé-Umutina, está disponível para consulta no repositório da UnB.


*Com colaboração de Luiza Aldser

 

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