Março de 1964, ano de início da ditadura militar no Brasil e permeado por memórias sensíveis. A recém-inaugurada Brasília, construída para ser a capital do país, não era exatamente o ideal de cidade que projetado anos antes. Era ainda um grande canteiro de obras e sofria com a instabilidade política, polarização, repressão ao povo, desemprego e revoltas populares.
Os primeiros prefeitos encobriram as tentativas de remoção dos moradores de espaços provisórios como o Núcleo Bandeirante e de acampamentos que viraram vilas. É neste cenário que surge a mobilização social denominada Levante da Turma da Boa Vontade, que emergia às vésperas do golpe militar de 1964.
Durante três dias, empregados da prefeitura do DF que se autodenominavam trabalhadores da boa vontade protestaram por não receberem salário. Juntaram-se a eles desempregados e trabalhadores grevistas da construção civil, com o desejo comum por melhorias nas condições de trabalho e comida.
Talvez você nunca tenha ouvido falar, mas esse é apenas um pedacinho da histórica luta política popular na capital federal, que nesta sexta-feira (21) completa 63 anos. Esse momento é resgatado por meio das ações do projeto de extensão Outras Brasílias, desenvolvido pelo Departamento de História da UnB.
A iniciativa apresenta registros e memórias sobre o Distrito Federal e busca superar o modelo de “história única”, centrada em grandes personagens como Juscelino Kubitschek. Este é um estímulo para repensar a narrativa clássica e idealista da capital que muitas vezes invisibiliza a singularidade de projetos e sujeitos históricos.
"O nosso trabalho parte da pesquisa documental que nos permita olhar para a história do DF de uma outra forma, o que envolve buscar documentos de até mais de 200 anos e encontrar recortes mais interessantes, étnicos, raciais, de gênero. Um desses trabalhos são as mobilizações do Levante e como elas são retratadas pelos jornais", explica o professor de História e coordenador-adjunto do projeto, Deusdedith Rocha Júnior.
Por meio de cinco fotografias, selecionadas dentre várias que mostram a insatisfação com a política e com as péssimas condições de vida daquela época, a iniciativa de extensão reconta parte desta história por meio do Levante.
"Descobrimos dois conjuntos de fotografias do Arquivo Público, datadas do mesmo momento, com a depredação na SubPrefeitura do Núcleo Bandeirante e a mobilização de trabalhadores em Taguatinga", conta a coordenadora do projeto, Cristiane Portela. "Daí, partimos para a pesquisa em jornais, que citam o envolvimento político da época e a participação de retornistas, pessoas que apoiavam o retorno da capital para o Rio de Janeiro", explica.
Segundo a docente, nas entrelinhas desses registros, feitos pelo próprio poder público, está o descontentamento da população com a falta de alimento e trabalho. Os protestos chegaram à Esplanada e a Taguatinga. Em coro, os manifestantes gritavam: "Pão ou morte!". O brado dá nome ao quarto de dez dossiês produzidos pelo projeto de extensão, material que reúne um conjunto de fontes documentais organizadas por temáticas.
Assista ao vídeo Ditadura para além dos centros: o Levante da Turma da Boa Vontade no Distrito Federal (1964)
Cada um dos dossiês apresenta um caso, com todo o contexto histórico, pistas e um roteiro de investigação a ser seguido para desvendar o final da história. Eles fazem parte do conteúdo de um módulo do curso de formação continuada Outras Brasílias: ensino de História do DF a partir de fontes documentais, destinado a docentes da rede pública de ensino do DF.
"Ao desenvolver esses episódios pouco conhecidos, o projeto contribui para a construção de uma história pública qualificada ampliada, tanto para os estudantes quanto para os professores", complementa a coordenadora.
Dando um spoiler sobre o fim das manifestações, Cristiane fala sobre a participação de Darcy Ribeiro, então chefe da Casa Civil do presidente João Goulart. "Ele é a peça central de uma das fotografias. Naquele momento, ele aparece ali na função de desmobilizar o Levante. Mas no processo que se instala a seguir, ele é acusado de ser um dos líderes do movimento, que se consolida e é acompanhado de perto durante a ditadura", explica a historiadora.
“Por que esse evento não consta na história do DF? De que modo foi construída nossa história para apagar acontecimentos como este?”, indaga Deusdedith. “Ainda há pouco ensino sobre a história do DF e estamos propondo ao invés de repetir, trazer novos eventos para entender de forma mais ampla e aprofundada. Então, a gente percebe que essa documentação é o melhor instrumento para levar um assunto como esse para a sala de aula", comenta.
>> Assista: Outras Brasílias no UnBTV Entrevista
BRASÍLIA E DF – Comumente tidos como sinônimos, Brasília e Distrito Federal se mesclam em conceitos administrativos, políticos e geográficos, com diferenças sutis. Para muitos, Brasília é muito mais que uma localidade e incorpora todas as 33 Regiões Administrativas do DF, cada uma com suas características próprias, numa espécie de organismo vivo que funciona em conjunto.
Antes de seu nascimento oficial, há 63 anos, o coração das periferias já pulsava, com vozes e histórias de pessoas que vivem e constroem a cidade de maneira rica, singular e com diversidade cultural, social e histórica. Destacar histórias mais inclusivas, com a participação de todas as localidades é a vertente do Outras Brasílias, de acordo com integrantes do projeto.
“Se perguntarmos para um urbanista e para um geógrafo vamos ter duas respostas do que é Brasília. Para nós historiadores, o que interessa mais é entender o processo de formação urbana que se sobrepõe a outras formações que já existiam aqui”, salienta Deusdedith. “Quando falamos de Brasília, podemos estar falando da capital ou do Distrito Federal. Mas, por mais que tenha a relação de interdependência, há vida própria, histórias, contradições e problemas em cada cidade, que nem sempre dialogam com as outras ou com o centro”, pontua.
“Quando falamos de Outras Brasílias, estamos falando dessa identidade original de cada parte deste sistema, com suas particularidades, mas também do resgate de histórias não contadas, até dentro do Plano Piloto”, destaca Cristiane Portela. Segundo ela, como goiana e moradora de diversas cidades no DF, é importante sentir o pertencimento e a identidade do que é ser brasiliense, por meio da construção dessa nova historiografia.
“Comemorar Brasília é muito importante. Mas temos que celebrar criticamente, reconhecendo que esse lugar tem muitas belezas, mas também tem muitas desigualdades e histórias que não foram contadas”, comenta a docente. “Temos que reconhecer que, como toda história, a gente não tem só belezas, mas também contradições. Então, pensemos essa Brasília como múltipla, reconhecendo o Distrito Federal como um todo”, enfatiza Cristiane.
"Para mim, enquanto estudante de história, esse projeto modifica a identidade do ponto de vista de uma pessoa que nasceu e foi criada na periferia de Brasília. Ele me fez perceber que eu faço parte da história de Brasília, ao ver que a minha cidade também é importante", pontua a extensionista Carla Neves.
>> Conheça o projeto Outras Brasílias
RESULTADOS – A união das forças e dos trabalhos de Cristiane, Deusdedith e outros docentes e alunos, que hoje formam uma equipe de mais de 30 pessoas, resulta na criação do projeto Outras Brasílias, em 2018.
“O projeto é a culminância de várias pesquisas e experimentações, que surgiu enquanto eu dava aula numa escola pública no Recanto das Emas”, relembra Cristiane. “Foi lá que percebi a demanda dos meus estudantes de entender o lugar onde eles viviam e reforçar esse sentido de pertencimento e identidade das periferias”, explica a historiadora.
Desde então, os pesquisadores participam ativamente da produção e do debate sobre a construção dessa historiografia, elaborando produtos de divulgação pública da história e para o ensino de história local e regional, a partir de diferentes abordagens e perspectivas disciplinares.
Além dos dossiês, ainda no âmbito de formação, mais de 300 estudantes de graduação cursaram a disciplina Laboratório de Ensino de História Outras Brasílias, entre os anos de 2020 e 2022. As ações de extensão na graduação também estão organizadas em outras três frentes: a pesquisa histórica, a constituição de acervos público-participativos e a divulgação científica.
As pesquisas bibliográficas e de campo servem de orientação para todas as atividades formativas sobre o tema. A frente de constituição de acervos resultou na criação de um espaço arquivístico no Centro de Ensino Médio Elefante Branco (CEMEB), em 2019. Já o âmbito da divulgação científica efetivou-se com o desenvolvimento de dois produtos de inovação, feitos por uma equipe multidisciplinar: o podcast Papo de Orelhão e o jogo Atitude Historiadora – histórias no quadradin.
>> Luíz Gustavo é estudante de História e um dos criadores do podcast Papo de Orelhão, produto baseado nos dossiês
O podcast histórico-educativo, disponível para acesso pelo Spotify, foi inspirado em programas de rádio e conversas telefônicas e tematiza em sua primeira temporada o cotidiano de mulheres na construção de Brasília, a partir de um olhar interseccional – ou seja, numa perspectiva articulada entre gênero, raça e classe.
Já o jogo virtual, em formato visual novel, em breve estará disponível para sistema Android e computador. Ele propõe, em seu primeiro episódio, uma imersão histórica virtual no contexto Levante da Turma da Boa Vontade. A iniciativa é coordenada pela estudante Carla Neves.
>> Carla Neves, coordenadora do jogo Atitude Historiadora – histórias no quadradin, fala sobre como o produto foi desenvolvido
FORMAÇÃO – O curso Outras Brasílias: ensino de História do DF a partir de fontes documentais está com inscrições abertas para a terceira edição, que acontece de maio a julho deste ano. O curso totaliza 120 horas (dois módulos de 60h), a serem certificadas como atividade de extensão pela Universidade de Brasília. As inscrições serão recebidas até 30 de abril, por meio do formulário disponível neste link.
A proposta é coordenada pelo Departamento de História, junto com o Departamento de Métodos e Técnicas da Faculdade de Educação e com apoio institucional da Coordenação de Integração das Licenciaturas (CIL/UnB). Serão nove encontros, sempre às segundas-feiras, nos turnos matutino ou vespertino. Dúvidas podem ser enviadas para o e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
Veja breve vídeo sobre o Outras Brasílias:
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